O pensador equatoriano Alberto Acosta, autor de O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos, livro que lançamos em janeiro de 2016 em parceria com a Autonomia Literária e a Fundação Rosa Luxemburgo, concedeu em maio uma entrevista ao Vitor Taveira, do portal Cidadanista. O Blogue da Elefante reproduz o bate-papo abaixo.
Com a crise generalizada da esquerda e do sistema político, e agora que a euforia do “desenvolvimento” vivido na era Lula abandonou de vez o coração e a mente dos brasileiros, as ideias do Bem Viver estão ganhando corpo no país. Cada vez mais movimentos sociais incorporam as noções descritas por Alberto Acosta, e emanadas da vida em resistência das populações tradicionais andinas e amazônicas, em suas rotinas de luta.
Em maio, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e o Iser Consultoria lançaram a cartilha Para evitar o desastre: como construir a sociedade do bem viver, que usa a obra de Alberto Acosta, entre outras, como referência para discutir os desafios da crise — que não é apenas política, mas também social e ecológica.
O que é o Bem Viver e quais suas influências? Seu livro lançado no Brasil o sugere como “uma oportunidade para imaginar outros mundos”. O que quer dizer com isso?
Mais do que conceitos ou teorias, o Bem Viver sintetiza vivências. Surge a partir das comunidades indígenas. Nutre-se de seus valores, de suas experiências e sobretudo de suas múltiplas práticas. Não provém da academia ou de algum partido político. E na medida em que promove a vida em harmonia dos seres humanos vivendo em comunidade e destas vivendo em harmonia com a natureza, nos oferece há centenas de anos uma série de lições de como se poderiam imaginar outros mundos em que caibam todos os mundos, sempre assegurando a justiça social e a justiça ecológica.
O que podemos considerar como a comunidade indígena, em termos amplos, tem um projeto coletivo de futuro com clara continuidade desde seu passado. Uma evidente demonstração de responsabilidade com a vida. Essas utopias andinas e amazônicas, junto a outras formas similares de vida ao redor do planeta, se manifestam de diversas formas em seu discurso, em seus projetos políticos e sobretudo em práticas sociais e culturais, inclusive econômicas. Aqui radica uma das maiores potencialidades do Bem Viver.
A tarefa então é apreender das experiências dos povos que têm sabido viver com dignidade e harmonia desde tempos imemoriais, isso sem chegar a idealizar a realidade indígena.
Você propõe o Bem Viver como uma alternativa ao desenvolvimento e não como um “desenvolvimento alternativo”. Em que o Bem Viver se diferencia essencialmente da proposta do desenvolvimento, considerada como uma grande ideologia do século XX?
Estas cosmovisões, ligadas a territórios específicos, propõem opções diferentes à cosmovisão ocidental, ao surgir de raízes comunitárias não capitalistas, harmonicamente relacionadas com a natureza. A partir desta leitura, o Bem Viver propõe uma transformação de alcance civilizatório ao ser biocêntrica, já não mais antropocêntrica (na realidade se trata de uma trama de relações harmoniosas vazias de qualquer centro); comunitária, não só individualista; sustentada na pluralidade e na diversidade, não unidimensional, nem monocultural. Para entendê-la é preciso um profundo processo de descolonização no político, no social, no econômico e, com certeza, no cultural.
Um ponto deve ficar claro, ao falar de Bem Viver, pensemos no plural. Ou seja, imaginemos bons conviveres e não um Bem Viver único e homogêneo, que resulta impossível de cristalizar. O Bem Viver, definitivamente, não poderá tornar-se um mandato global único como aconteceu com o fracassado conceito de “desenvolvimento” desde meados do século XX.
A Constituição do Equador inclui algumas novidades em nível internacional, entre elas a inclusão pela primeira vez do Bem Viver e dos Direitos da Natureza. O que significa para o país e o mundo? Como estes princípios se relacionam?
Esses avanços de conotação revolucionária, alcançados na Constituição de 2008 no Equador, ficaram plasmados simplesmente numa série de dispositivos constitucionais. Os Direitos da Natureza, que nunca foram compreendidos pelo ex-presidente equatoriano, foram empregados por ele para colher aplausos em nível internacional, mas na prática não são respeitados. E o Bem Viver, esvaziado de seus conteúdos transformadores, se converteu em um instrumento de propaganda para consolidar o poder do caudilho do século XXI: Rafael Correa. Algo similar acontece na Bolívia com Evo Morales.
Então não se pode cair na armadilha da propaganda do Bem Viver dos governos desses países. Nesses casos, terminou-se por vampirizar esse conceito para colocá-lo a serviço de seus apetites de concentração de poder e de disciplinamento de suas sociedades. Assim, o Bem Viver funciona como um dispositivo de poder para modernizar o capitalismo. Uma verdadeira aberração.
Sua interrelação, para atender à segunda parte da pergunta, é evidente. O Bem Viver propõe uma vida em harmonia dos seres humanos entre si e destes com a natureza. Nesse contexto entram os Direitos da Natureza. Seu potencial de superar as fronteiras equatorianas, se projeta em nível global. Este reconhecimento constitucional começa a ser motivo de amplas reflexões e debates, inclusive começa-se a trabalhar no que poderia ser num futuro não distante uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza. Igualmente tem sido proposta a criação de uma institucionalidade internacional que julgue os crimes contra a natureza; outra iniciativa que abriu as portas é o Tribunal Ético Permanente dos Direitos da Natureza, colocado em marcha há alguns anos por parte de várias organizações da sociedade civil e que já teve sessões em vários continentes (e no qual eu tenho a honra de participar como juiz).
Outro pilar apontado para permitir um Bem Viver seria o Estado plurinacional. Que diferenças esse teria em relação ao modelo tradicional de Estado na América Latina? E qual seria o papel do Estado em um projeto político baseado no Bem Viver e na plurinacionalidade?
Um ponto-chave: não se trata de conquistar e modernizar o Estado como conhecemos para a partir daí, de cima para baixo, tentar mudar o mundo. Esse foi outro dos graves erros do progressismo: concentrar-se no fortalecimento do Estado, acreditando que essa era a única ferramenta adequada para impulsionar as mudanças que desejavam.
Cada vez estamos mais convencidos que é preciso pensar em outro tipo de Estado – talvez um Estado plurinacional, como propõem os movimentos indígenas da Bolívia e Equador –, que possa contribuir para a construção de uma sociedade não autoritária e que esteja controlada desde a base. Ou seja, desde as instâncias de autogoverno, comunitárias em essência, cujo poder compartilhado vai subindo em níveis, os quais se sustentam sempre na base de comunidades diversas. Nessas estruturas não há espaço para caudilhos iluminados e autoritários.
Não se trata de dar resposta à equação de mais Estado ou mais mercado. Essa é uma aproximação falsa em sua essência. A base das transformações se encontra nas comunidades, essa seria uma leitura acertada do Bem Viver. O que não implica desconhecer ou descuidar de outros âmbitos de ação estratégica, incluindo também o internacional.
Há diferenças e contradições de fundo entre povos indígenas e posições da esquerda tradicional, mais especificamente das vertentes marxistas. Em seu ponto de vista, há como superá-las no sentido de construir unidade entre as esquerdas ou são contradições insuperáveis no campo teórico e na prática política?
Assim como há pontos de coincidência, há outros que os mantêm em margens opostas. A busca da justiça social poderia ser o grande ponto de união. Entretanto, as grandes diferenças aparecem quando se constata que as esquerdas tradicionais ainda estão presas à Modernidade, de alguma maneira são suas filhas. Basta ver que muitas delas continuam atadas a promessas do progresso em sua direção produtivista e do desenvolvimento, sobretudo em sua visão mecanicista de crescimento econômico.
O Bem Viver, como alternativa ao desenvolvimento, tem essas premissas. Portanto, o socialismo, se é que pretende se manter em sintonia com suas origens transformadoras, deve necessariamente superar essas lógicas próprias do progresso e aquelas posições antropocêntricas. E isso implica, por exemplo, caminhar para a desmercantilização da natureza se realmente quer aprofundar os processos de emancipação da humanidade.
Se se propõe superar a exploração da natureza em função da acumulação de capital, com maior razão haverá que deixar para trás a exploração do ser humano. Particularmente, haverá que valorizar e entender tanto o que representam a justiça social como a justiça ecológica, intimamente inter-relacionadas, pois não há uma sem a outra, e vice-versa. É indispensável, então, erradicar a pobreza, o que só será possível se simultaneamente se combater a excessiva concentração da riqueza.
O que interessa, então, é conhecer as diferenças para superar democraticamente as distâncias existentes enfrentando a civilização capitalista que, definitivamente, sintetiza a soma de civilizações fundamentadas na dominação sobre seres humanos e natureza. No Bem Viver, ao contrário, se poderiam reunir todas aquelas visões que propõem a emancipação dos seres humanos e de todos os seres vivos de toda forma de dominação e exploração.
Além disso, as esquerdas deverão ser simultaneamente socialistas, ecologistas, feministas, descoloniais, laicas, em essência, democráticas.
Que contribuições acredita que um olhar desde o Bem Viver pode contribuir para pensar a realidade brasileira, que por um lado acompanha a crise do ciclo desenvolvimentista e por outro acaba de assistir à tomada do poder pela direita?
Um primeiro passo que se deve dar no Brasil e em outros países em que os limites dos governos progressistas demonstram seu esgotamento é a autocrítica. Ainda que surpreenda algumas pessoas, o certo é que o retorno das forças de direita tradicional ao poder se deve, em primeiro lugar, ao fracasso dos progressismos. Que o império e a CIA, assim como as grandes corporações, conjuntamente com os grupos oligárquicos de poder internos, tenham trabalhado a favor do retorno das direitas tradicionais ao poder é algo óbvio. O contrário seria algo que surpreenderia.
É um fato que esses governos progressistas, apesar de terem prezado pela modernização do capitalismo, não foram cômodos aos grupos de poder transnacionais e locais. O lamentável é que o neoliberalismo e inclusive a restauração conservadora estejam de volta junto a governos progressistas no Brasil com Dilma Rousseff, na Bolívia com Evo Morales ou no Equador com Rafael Correa.
No caso brasileiro resulta muito indispensável reconhecer que o atual presidente Temer e seu partido político corrupto foram estreitos aliados do governo do PT durante muitos anos. Um governo que não conseguiu cristalizar os ansiados e muito indispensáveis clamores pela reforma agrária. Um governo que forçou como nunca antes os extrativismo, atropelando as comunidades indígenas e a natureza; o que explica, além do mais, a reprimarização e inclusive a desindustrialização da economia brasileira. O governo de Dilma, sobretudo em sua última etapa, se reencontrou com as práticas econômicas neoliberais. Os governos do PT, além disso, não foram capazes de evitar ou neutralizar a reprodução da corrupção.
Esses governos do PT, como os outros governos progressistas da região, não questionaram o Estado como forma de organizar e exercer a autoridade pública, ou seja, o poder. Simplesmente se empenharam em modernizá-lo, buscando também conseguir mais ingressos fiscais para impulsionar obras públicas e uma maior redistribuição do ingresso. Ou seja, são governos estatistas que reforçaram o estatismo existente nessas sociedades. E, ao reforçar o estatismo, frearam os processos emancipadores que surgem no seio da sociedade.
Não se pode minimizar o fato de que estes governos (sobretudo o equatoriano e o boliviano) têm tratado de subordinar os movimentos sociais, e ao não conseguir, têm buscado sua divisão e inclusive sua desaparição. A ampliação dos extrativismos nestes países com governos progressistas, assim como acontece naqueles com governos neoliberais, se dá com base na perseguição e criminalização de quem defende a natureza e os Direitos Humanos. Não nos esqueçamos de que a violência não é uma consequência dos extrativismos, a violência é uma condição necessária dos mesmos.
Então, se pretende encontrar respostas desde as cosmovisões do Bem Viver, resulta indispensável repensar as alternativas superando essas práticas falidas dos governos progressistas. É preciso assumir como ponto de referência os principais elementos do Bem Viver: o comunitário, a relação harmoniosa com a natureza e aquelas questões que sintetizam a alma dos povos vivendo em comunidade. Há que enfrentar o capitalismo, não conviver com ele e menos ainda tratar de modernizá-lo.
Esse empenho demanda sempre mais democracia, tanto na organização das agrupações políticas e suas frentes de luta, como na construção de propostas transformadoras. Não se trata simplesmente de reconquistar o poder perdido, como parece ser a ânsia das forças políticas progressistas deslocadas do governo no Brasil e Argentina.