A pandemia não acabou. Na semana de 10 de fevereiro, o Brasil registra 1.357 mortes por covid-19 em 24 horas, com o total de mortos se aproximando dos 235 mil. Há algumas poucas e pequenas boas notícias na direção do fim desse pesadelo: alguns dizem que há queda na curva de casos: são, em média, 46.055 novos casos por dia, uma redução de 11% em duas semanas, com queda de 1% no número de mortes – o que podemos considerar, na verdade, uma estabilidade mórbida num patamar altíssimo. São três semanas seguidas com a média acima de mil mortes por dia. Por outro lado, por mais que sejam emocionantes as notícias sobre a vacinação de idosos, próximos ou famosos, até agora cerca de 4 milhões de pessoas receberam primeira dose no país – o que corresponde a 2% da população vacinada, uma porcentagem baixíssima diante da urgência de frear a pandemia. No Brasil, a estimativa é que a vacinação em massa só seja atingida em meados do ano que vem. Outros países da América Latina, como Argentina e Chile, também terão vacinação em massa somente em 2022, segundo as estimativas. E Bolívia, Paraguai, Venezuela, Guiana e Suriname, a partir de 2023. Ainda há notícias confirmando mortes em decorrência de uma variante da covid-19.
A pandemia não acabou. Além disso, parece que sequer vamos tirar alguma lição desse período nefasto, seja mudando hábitos individuais ou, principalmente, cobrando atitudes que resultem em mudanças estruturais na sociedade. Os vírus, afinal, são sim criação dos seres humanos, como defende Rob Wallace em Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Para o autor, esses micro-organismos são resultado da maneira como passamos a criar animais para consumo nos últimos quarenta anos, número que cresce quase duas vezes mais rápido que a população humana. E isso, para a natureza, cuja lei mais importante é o equilíbrio na diversidade, significa uma praga gigante. Uma atração inevitável para outros animais, um banquete para micro-organismos. Um experimento permanente de mutações e contágios extremos.
“Os seres humanos construíram ambientes físicos e sociais, em terra e no mar, que alteraram radicalmente os caminhos pelos quais os patógenos evoluem e se dispersam. Os patógenos, no entanto, não são meros figurantes, golpeados pelas marés da história humana. Eles também agem por vontade própria, com o perdão do antropomorfismo. Demonstram agência”, escreve Rob Wallace na introdução do livro.
Leia um trecho do capítulo Sistemas globalizados de produção de alimentos, desigualdade estrutural e covid-19 de Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, de Rob Wallace:
A nossa série de ciclos de acumulação — os saqueios dos Estados Unidos e a escalada da China — impactou as próprias origens da covid-19. Nos últimos quarenta anos, a China optou por mudanças maciças no uso do solo e na migração para alimentar e remunerar internamente a sua população (Wallace, R. G. et al., 2010). Tais mudanças tiveram um impacto considerável ao desassociar (e reassociar) as ecologias tradicionais em novas configurações, com impactos profundos sobre a economia e a epidemiologia. Nos deparamos com a liberalização pós-econômica e com o surgimento de várias cepas de novos influenza, entre elas a h5n1, a h6n1, a h7n9 e a h9n2, bem como o Sars-CoV-1 e, mais recentemente, uma explosão de febre suína africana que matou metade dos porcos da China em 2019 (Liu, Cao & Zhu, 2014; Vergne et al., 2017).
As origens locais da covid-19 ainda são alvo de controvérsias, mas a genética do vírus Sars-CoV-2 mostra que ele é um rearranjo de um coronavírus de morcego com uma cepa de pangolim que posteriormente sintonizou-se com o sistema imunológico humano, durante ou pouco antes do surto de Wuhan (Andersen et al., 2020; Xiao et al., 2020). Todavia, a agricultura claramente tinha um papel a cumprir nesse processo, ainda que o mercado central de Wuhan não o tivesse. De alguma forma, o vírus foi retirado de um dos muitos coronavírus circulantes em uma variedade de espécies de morcegos na China central em direção a Wuhan (Wu et al., 2016). Alegar que a agricultura não teve nenhum impacto — como a China tem esboçado em sua posição oficial, ou, ainda mais absurdo, que o vírus nem mesmo se originou na China — pode colocar aqueles que preferem negar o papel do agronegócio nisso tudo em uma posição bastante frágil.329 Como explicar a mudança de morcegos para pangolins e, talvez, para outras espécies intermediárias, como do porco para o homem, sem fazer menção à agropecuária (ou à extração de madeira ou à mineração)? A assinatura genética do vírus não aponta para um acidente de laboratório (Andersen et al., 2020).
Muito provavelmente, um circuito regional de produção em expansão manobrou o setor de alimentos silvestres, cada vez mais formalizado, e a produção industrial de animais em direção ao interior do país, onde ambos os setores encontraram reservatórios de morcegos (Field, 2009; Afelt, Frutos e Devaux., 2018; Wallace et al., 2020; Wallace, R. G., 2020).330 Círculos periurbanos de extensão e densidade populacional crescentes podem aumentar a interface (e o transbordamento) entre populações de animais selvagens e humanos das áreas rurais recentemente urbanizadas. Essas novas geografias também reduzem o tipo de complexidade ambiental com a qual as florestas podem interromper a transmissão de vírus mortais — aquele papel que gostaríamos de ver as florestas desempenhando (Wallace, R. et al., 2018).
Esse circuito regional de produção — das florestas periurbanas para as cidades, provável origem da covid-19 — se reproduz no mundo inteiro (Wallace, R. et al., 2020). Tal quadro nos dá uma estrutura mais ampla para analisar surtos em quase todos os lugares, não apenas na China. Sars-CoV-1 e Sars-CoV-2, ebola, zika, febre amarela, peste suína africana, gripes aviária e suína, vírus Nipah, febre Q, entre outros, assim como historicamente o hiv, todos se originaram ou reemergiram em algum lugar ao longo desses circuitos de produção em expansão. Seja na floresta, seja ao redor do novo contínuo periurbano, seja em fazendas industriais, seja em fábricas de processamento próximas das cidades ou dentro delas. Muitas dessas novas ecologias são produtos da imposição imperialista ou neoliberal (Wallace, R. G. & Wallace, R. 2016). Claramente, doenças infecciosas não dizem respeito apenas ao próprio vírus, mas também ao contexto do qual emergem (Wallace, R. G. 2016).
Olhando para o futuro, descobrimos que os coronavírus são apenas alguns dos muitos patógenos que se desenvolveram em tal contexto agroeconômico. O que sofremos hoje já está em movimento em algum outro lugar. Em diversos lugares. Como furacões virais se alinhando ao longo do Oceano Atlântico.