Vício corporativo

Você acreditava que a indústria do fumo estava derrotada? Considerou que os informes do Ministério da Saúde eram suficientes? Pense novamente. A indústria do tabaco está viva, e matando.

Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 

Estoura-peito. Podrão. Pigas. Pito. O cigarrão. Sumiu, né? Boa parte do pessoal que lê esta newsletter cresceu sabendo que Free é uma questão de bom senso e que os fumantes de Marlboro têm mais chance de serem caubóis ou alguma ilusão macho brega assim. Desde 2011 está proibida qualquer publicidade de cigarro, nem mesmo no ponto de venda, e a saúde pública venceu essas batalhas, olha que raro e precioso.

Não adianta comemorar. No capitalismo em colapso é assim: o SUS pisca e a indústria já inventou novas maneiras de vender veneno viciante. Ou você acha que essas corporações vão largar o osso — ou melhor, os pulmões? Sem chance, os caras inventaram na prática as fake news no longínquo 1953, décadas antes de existir um conceito para dar forma à deliberada produção de ignorância.

Pois atualmente existe a agnotologia, campo acadêmico inaugurado em 1995 por Robert Proctor, historiador na Universidade Stanford, abordando a ignorância feita à mão pelas corporações, e o campo todo começou com as observações da indústria de cigarros, que investiu centenas de bilhões de dólares ao longo de décadas e até hoje ativamente promove desinformação. É desse povo que estamos falando.

Além de agnotologia você também levará deste texto o conceito de marketing sorrateiro, onde, impedida de anunciar diretamente, a indústria recorre a subterfúgios sutis.

Ou nem tão sutis, não é mesmo, Netflix? Cena do seriado Stranger Things.

E nós, a sociedade sujeita a estas corporações predatórias, mais uma vez recorremos ao bom jornalismo para contra-atacar. Roucos e sufocados: a indústria do cigarro está viva, e matando é livro-reportagem pesadíssimo que radiografa o setor no Brasil. Os repórteres João Peres e Moriti Neto exibem minuciosamente a indústria fumageira, e spoiler: é terrível. Moriti tirou tempo para nos ajudar a refletir sobre o livro.

Concluímos que a esta resenha curtinha cabe compartilhar exemplos de voracidade corporativa em três áreas: campo, mídia e política institucional.

Campo

De cara já podemos nos indignar com a existência da doença da folha verde do tabaco, definida como a overdose de nicotina a que trabalhadores desses monocultivos estão sujeitos. Os agricultores apresentam níveis de nicotina maiores do que os de fumantes severos. Evidente que as muitas complicações de saúde associadas à substância se fazem presentes.

É, portanto, uma colheita que mata. Mas aí vem o capitalismo e joga por cima um oligopólio que estrangula os agricultores do Vale do Rio Pardo, no centro do Rio Grande do Sul, região com menos de quinhentos mil habitantes e 20% da produção do país — que é um dos maiores produtores mundiais de tabaco. Impedida de anunciar maciçamente, a indústria se voltou para dentro e fechou o punho ao redor dessas vinte e poucas cidade de clima ideal.

Há coisas que só o oligopólio faz por você, como contratos draconianos que amarram os agricultores a um trabalho perigoso e mal remunerado, forçados a utilizar insumos e processos ditados pela indústria, forçados a comprar de marcas licenciadas, achincalhados com frequente ameaça de violência física e moral. Imagine como se expressa o oligopólio local do poder dos acionistas da — como se diz em gringolês — Big Tobacco, todos aqueles psicopatas muito lucrativos estudados pela agnotologia.

Cinco empresas controlam o mercado mundial: Philip Morris, British American Tobacco (BAT), Japan Tobacco International (JTI), Imperial Brands e China Tobacco detêm mais de 80% da atividade. Em nossas terras, faz um século que a BAT controla a Souza Cruz, líder absoluta do setor. Agora até você tem motivos para se indignar, leitor nacionalista fumeta que por descuido caiu neste texto.

Mídia

Além do nada sorrateiro marketing expresso na imagem compartilhada acima, onde o herói está lá com o cigarrão entre os lábios de frente a uma criança, olharemos agora para outros exemplos de marketing paralegal.

Um [eu não acredito que escreverei isso] digital influencer aparece fumando em suas redes particulares, isso é marketing? E se as fotos forem lindas, produzidas pela mesma agência profissional?

Muito evidente ou ainda estamos sorrateiros? Atenção à # comum.

A corporação tentou negar a ação de marketing, mas foi desmentida pela revista Exame, que constatou que uma agência especializada no mundo digital havia sido contratada para a tarefa. As pessoas que divulgaram as imagens ganharam cachês variando entre três mil e oito mil dinheiros.

Todos os filmes indicados ao prêmio máximo do Oscar 2018 tinham cenas de pessoas fumando. Em setembro de 2017, a Philip Morris renovou o contrato de patrocínio com a Scuderia Ferrari por um valor estimado em seiscentos milhões de reais ao ano.

E se o blogueiro, o subfamoso aparecer fumando cigarros da marca x ou y? Não precisa falar nada, não existe texto pró-cigarro, algum desses fulanos está lá em seu camarote recebendo fãs e fotos com a onipresença do cigarro da marca tal.

Moriti afirma que a indústria dá ao marketing um disfarce de livre arbítrio. Pega público com o discurso descolado, mirando em jovens — precisam rejuvenescer os fumantes, afinal os velhos morrem mais rápido do que a média.

Política

Começaremos pelos institutos de fachada desmascarados no livro. Lá estão: a Associação Brasileira de Combate à Falsificação, mais próxima às polícias; o ETCO, Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, que frequenta as altas rodas políticas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, em companhia da Frente Nacional de Combate à Pirataria; e o Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteira, Idesf, com sede em Foz do Iguaçu, cidade-símbolo do contrabando, que garante poder de articulação com Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público Federal.

Todos parceiros íntimos da indústria do tabaco. Novamente, falamos do setor que inventou o lobby político predatório. Uma indústria dessas só largará os pulmões se obrigada. Se enraizaram no Vale do Rio Pardo, são responsáveis por enorme parcela do PIB local e usam este peso como instrumento de chantagem. Uma tentativa de atuação do governo federal para diversificar as culturas na região recebeu resistência, os agricultores estão convencidos de que a única maneira de sobreviver é plantando folha de tabaco, mesmo sabendo que é especialmente desgastante e árduo.

Comerciantes, agricultores e políticos locais são mantidos sob controle na base da ameaça de que a indústria vai sair e levar a fonte de renda.

Para Moriti, o mais impressionante é a tenacidade com que investem em seus quadros. Primeiro, identificam o personagem com influência comunitária e investem nele até virar líder de um novo sindicato, já cooptado, com acesso a novos e exclusivos recursos. Então seguem investindo no sujeito até ele se tornar vereador, prefeito e eventualmente se eleger para um cargo em Brasília, onde já chega preparado para cumprir o discurso da indústria.

Jornalismo com J

Que prazer é escrever sobre O Joio e O Trigo, este projeto-irmão responsável por Roucos e sufocados. João e Moriti foram colegas na Rede Brasil Atual e lá decidiram trabalhar cobrindo o setor privado, sentindo esse desequilíbrio no foco das investigações nas redações.

Em 2015, produziram a grande reportagem “Sob a fumaça, a dependência”, em parceria com a Agência Pública, financiada pela ACT Promoção da Saúde e pelo Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz).

A ACT tem um papel relevante nesta história — financiou este livro-reportagem cabuloso. Não é exagero dizer que Roucos e sufocados define um método de cobertura do setor privado por uma organização jornalística independente. Foi o livro que deu as bases a esta maravilha que é O Joio e O Trigo, organização dedicada a cobrir a indústria alimentícia em todos os seus tentáculos.

Estamos liberados para informar que ano que vem O Joio e O Trigo intensificará a cobertura sobre tabaco, então pode esperar por mais reportagens. por Roucos e sufocados redefine a prática do livro-reportagem ao voltar suas lentes minuciosas para as corporações agressivas do setor.

Você acreditava que a indústria do fumo estava derrotada, caro leitor? Considerou que os informes do Ministério da Saúde eram suficientes, cara leitora? Pense novamente. A indústria do tabaco está viva, e matando.

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