7 de outubro de 2023 e a política da amnésia

por Rafael Domingos Oliveira 
Organizador de Gaza no coração

Quando começou a violência? Quando ela terminará? Dizer onde algo começa é decidir como ele deve ser compreendido. “Consequências dos ataques”, “desdobramentos”, “a guerra que se seguiu”, “resposta militar”, são algumas das expressões pelas quais o genocídio em Gaza vem sendo descrito pela imprensa, em artigos de opinião, textos de análise e até mesmo em contextos que supostamente buscam denunciar o morticínio. Essa perspectiva produz a ideia de que o Hamas instaurou, em 7 de outubro de 2023, uma violência inesperada e inédita que teria causado, motivado e justificado o genocídio. Esse ato de linguagem estabelece um começo: são os palestinos que teriam iniciado o ciclo da violência.

Mas uma pergunta importante a ser feita, nesse sentido, é: quando começou a violência? Não se trata de uma questão retórica, tampouco de um jogo de linguagem. Também não é uma tentativa de estabelecer um culpado único, um vilão personalizado sobre o qual recaia toda a responsabilidade pelo genocídio. No entanto, as respostas a essa pergunta são fundamentais para compreender quais possibilidades de futuro se abrem ao povo palestino e qual é o papel da solidariedade internacional diante disso.

Em Beginnings: Intention and Method (1975), Edward Said discute o ato de começar. Para ele, o “começo” não é um ponto neutro nem um simples marco temporal, mas um ato de linguagem, uma escolha intencional que organiza o sentido e estabelece autoridade. Distingue, assim, “começo” de “origem”: a origem pertence à esfera do mito, da natureza ou da divindade; o começo, ao contrário, é humano, histórico e profundamente político. Said mostra que todo começo carrega uma relação de poder: ele funda narrativas e legitima posições. A crítica, para ele, deve justamente revelar quem tem o direito de começar e quem é condenado a aparecer sempre depois — como resposta, reação, violência, desordem.

Essa narrativa não é apenas uma falsificação cronológica. É uma forma de controle epistemológico. Ela naturaliza o colonialismo e transforma o colonizado em agressor. O que ocorreu em 1948 com a Nakba, em 1967 com a Naksa, o que ocorre desde 2007 com o cerco a Gaza, dentre tantos outros acontecimentos da catástrofe permanente dos palestinos, é apagado em favor de um “começo” que devolve ao colonizador o privilégio de narrar e ao colonizado o peso da culpa. Said nos ensinou a identificar essa estrutura: o poder de definir o início é o poder de definir a verdade.

Quando os governos, a grande imprensa e os discursos cínicos afirmam que o que ocorre em Gaza começou em 7 de outubro (como uma resposta, um desdobramento), estão praticando precisamente esse gesto de poder que Said descreve. É uma operação de autorização discursiva: ao fixar um ponto de início, Israel e seus aliados produzem um campo semântico em que o massacre de palestinos aparece como reação legítima, e a resistência palestina surge como irrupção súbita de barbárie.

O 7 de outubro pensado como um “começo”, ou como um acontecimento fechado em si mesmo, é mais uma dessas operações de uma política da amnésia. Ele serve como uma estratégia de esquecimento, uma política que absolve o colonizador, reautorizando a violência colonial.

Dizer que o genocídio é um desdobramento de outubro de 2023 é um modo de esquecer 1948, mas também de preservar a inocência moral do Ocidente, sua imagem de guardião da civilização e dos direitos humanos, mesmo diante de um genocídio transmitido ao vivo.

Se até aqui já entendemos que a resposta à pergunta “Quando a violência começou?” não é o 7 de outubro, nos resta saber: quando ela terminará? A resposta é evidente. Nenhuma paz pode florescer sob o peso de um regime colonial.O colonialismo é, antes de tudo, um sistema de violência estrutural: física, material, simbólica e epistemológica. Ele se sustenta na aniquilação da dignidade e da humanidade do colonizado. Mas aniquilar o outro é também reduzir-se a nada e, por isso, a sociedade colonial é vítima de si mesma, de sua própria violência.

A colonização nasce de um gesto de imposição violenta, mas sua permanência depende da naturalização dessa violência. Ela se torna invisível, cotidiana, “respirável”. Assim, o colonizador pode sufocar o colonizado impunemente. Mas, quando o colonizado decide respirar, sobre ele recai a acusação de instaurar a violência. Respirar, para o colonizado, é romper o pacto da dominação e restabelecer o senso de humanidade que lhe foi negado. Sua respiração é fundadora de uma nova relação com o mundo, já disse Fanon É o retorno da sua própria violência que deixa o colonizador boquiaberto, horrorizado e ainda mais colérico.

O 7 de outubro como o começo do genocídio funciona, então, como uma negação dupla: nega o passado, porque apaga o colonialismo e a limpeza étnica, e nega o presente, porque retira dos palestinos a autoria da luta pela sua própria existência. A dominação colonial sempre se funda numa expropriação da narrativa. O colonialismo é construído sobre uma forma de esquecimento ativo: ele se refaz periodicamente, criando começos que o livram da responsabilidade histórica. É assim que as potências coloniais se reinventam como democracias e os colonizados são inventados como terroristas.

A verdadeira pergunta, então, não é “quando a violência começou?”, mas “quando ela terminará?”. E a resposta deveria ser óbvia: a violência só cessará quando o colonialismo chegar ao fim. Qualquer discurso ou prática que não leve isso em conta está apenas adiando a paz e permitindo a permanência da violência colonial.

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