Por Roberta Malta
Publicado em Marie Claire
Chef de cozinha natural e ativista da alimentação saudável, Bela Gil concedeu uma longa entrevista para a jornalista Roberta Malta, da Marie Claire, onde fala sobre seu novo livro, “Quem vai fazer essa comida”, em pré-lançamento com desconto na Elefante. Influenciada pela leitura de Silvia Federici, ela aponta o trabalho doméstico como um problema central para garantir uma alimentação saudável para a população brasileira. Leia a entrevista:
Marie Claire: Em Quem Vai Fazer Essa Comida?, livro lançado agora em março, você relaciona alimentação saudável, feminismo e trabalho doméstico. Queria ouvir mais sobre isso.
Bela Gil: Trabalhando já há um tempo com culinária e sendo ativista pela alimentação saudável e democrática, penso na oportunidade de todo brasileiro comer bem. Isso é uma garantia que as pessoas deveriam ter porque está na Constituição. Mas não são todas as pessoas que têm a oportunidade de escolher o que comer. A gente precisa de acessos. O primeiro é à informação. Saber que se alimentar bem é o melhor para o meio ambiente, para a sua saúde, para a sociedade como um todo. Mas existem vários outros fatores que escapam ao poder individual. A questão do acesso à alimentação saudável é muito mais profunda do que eu imaginava lá atrás.
Não é só uma escolha comprar orgânicos, de escolher pequenos produtores…
Não é! Tem muito mais coisa envolvida. A gente sabe que 70% das mortes do mundo vêm de doenças crônicas não transmissíveis, como câncer e diabetes. E isso está diretamente relacionado ao estilo de vida. Se a gente sabe que uma comida fresca, caseira diminui as chances de morte, a pergunta que fica é o título do meu livro: Quem vai fazer essa comida? E aí entra a questão do feminismo, que está diretamente relacionada à valorização do trabalho doméstico. Reconhecer esse trabalho é um caminho para que a alimentação saudável seja realmente uma possibilidade de escolha. A gente está morrendo pela boca. Ou está faltando comida ou as pessoas estão comendo mal. Então como consigo convencer as pessoas a cozinhar? Fazendo essa relação do trabalho doméstico.
O trabalho doméstico não remunerado, não é?
Sim. Isso é uma coisa que a gente deveria dar mais valor, porque a sociedade capitalista em que a gente vive só se sustenta por causa desse trabalho. É como se ele fosse um subsídio para a nossa economia.
Tem muito machismo embutido nisso.
Machismo e uma racialização também. A gente tem uma herança escravocrata que faz com que esse trabalho seja diminuído. E eu acredito que, para a gente criar justiça social, racial e de gênero, a gente precisa olhar de uma maneira muito profunda para o trabalho doméstico não remunerado, que é feito majoritariamente pelas mulheres. Esse trabalho já foi contabilizado por economistas, ele gera mais ou menos US$ 10 trilhões a US$ 13 trilhões por ano. Ou seja, é 13% do PIB mundial. Tem muito valor aí e a gente faz esse trabalho completamente de graça e sob um peso de culpa gigantesco. Então, os primeiros passos são reconhecer, valorizar e remunerar.
Você fez parte do grupo técnico de desenvolvimento da equipe de transição do governo Lula. Em que estado encontrou o país pós-Bolsonaro?
A gente recebeu um Brasil arrombado mesmo. E o que mais me entristece é saber que isso aconteceu por vontade política. Uma política genocida, de eliminar, exterminar a população, principalmente as minorias, que são maioria, os pretos, os indígenas.
Depois, foi convidada para a Secretaria Especial de Alimentação Saudável. Por que recusou?
Eu sempre quis trabalhar com políticas públicas. Não vejo mais uma saída para a gente democratizar a alimentação que não seja por fortalecimento e desenvolvimento de novas políticas públicas. Mas a vida pessoal e a profissional não se encaixaram com esse convite, neste momento. Teria que mudar para Brasília, e estou recém-separada. Aí decidi: “Não, Bela, têm muitas novidades acontecendo na sua vida, vamos acolher uma de cada vez e respirar”.
Qual o seu papel lá dentro hoje?
Estou diretamente ligada ao gabinete do ministro [do Desenvolvimento Agrário e Agri-cultura Familiar] Paulo Teixeira para pensar em como construir e fazer pontes de políticas públicas que fomentem a alimentação de qualidade. Trabalho com merenda escolar, hortas e cozinhas comunitárias.
Houve um boato de que você seria vice de Fernando Haddad (PT) nas últimas eleições.
Teve esse boato, sim. O que quase aconteceu foi eu me candidatar a deputada federal, mas desisti de última hora. Acho que vai demorar um pouco para eu ser uma parlamentar ou estar dentro do quadro executivo na política.
O que falta em você ou na sua vida para isso?
Boa pergunta. Porque eu acho que não falta nada. Mas as peças não se encaixaram ainda.
O presidente Lula sempre cita o churrasquinho como “o” evento social. De uns tempos para cá, no entanto, eu o vi falando em churrasco vegano também. Tem dedo seu nisso?
Tem um dedinho meu e também de colegas como o [ministro da Fazenda Fernando] Haddad, que na pandemia se tornou vegetariano, a Gleisi [Hoffmann, presidente do PT], que também é vegetariana, e muito da Janja, que faz essa ponte. Na pré-campanha a gente fez alguns encontros formais, mas muitos informais também, onde a gente conversava muito sobre alimentação. E uma das características que eu mais admiro no presidente é o fato de ele ouvir. Ele escuta as pessoas. Por mais que seja uma opinião diferente da dele, ele leva isso para casa e digere. Então, quando isso aconteceu, pensei: “Hum, nossa conversa rendeu”.
Você não seguiu o seu pai na música, mas está seguindo na política e com a alimentação [ex-ministro, Gil foi macrobiótico por sete anos].
Lembro de, pequenininha, ver o meu pai comendo arroz integral na cumbuquinha e achar bem estranho. “Como é que alguém troca esse arrozinho branco delicioso por um integral?”, pensava. Depois que eu comecei a praticar ioga [20 anos atrás], a gente começou a trocar. Ele me deu alguns livros pra ler, a gente conversava muito. Porque assim, a prática de ioga, e ele é da ioga também, fez o meu corpo rejeitar naturalmente os ultraprocessados, excesso de açúcar, carne, tal. E aí, por escolha própria, comecei a mudar a minha alimentação, estudar o assunto. E virei eu aquela pessoa que come arroz integral na cumbuquinha.
Já testou receitas com ele? Recebia críticas?
Super. Meu pai não é de passar a mão na cabeça. Se tiver ruim, ele vai falar; se puder melhorar, também. E a opinião dele sempre foi a mais importante porque eu sabia que ele reconhecia aquele sabor, aquela combinação. Ele entendia o porquê das minhas escolhas.
Como essa alimentação funciona com as crianças? Porque tem sempre uma piada de que seus filhos comem escondido nas festinhas.
E sempre vai ter. Mas eu acho que tenho feito um bom trabalho com a educação alimentar deles. Para mim, o mais importante é isso. Mas não quer dizer que eles não comam brigadeiro numa festa, não tomam um sorvete…
Não existem proibições?
Não são nem proibições porque são coisas que não entram na minha casa. Refrigerante, carne, leite condensado. Mas fora daqui eles têm uma vida social que frequentemente apresenta a eles a possibilidade de consumir coisas que aqui não existem. E eles provam, comem, mas não se torna um hábito. Já ouvi muito: “Deixa eles serem felizes”. E eu acho que a gente deveria começar a construir uma sociedade que acredita que criança feliz é criança que come legumes, verduras, arroz, feijão.
A Flor está na estrada com a sua família e acabou de gravar o longa Chama a Bebel (do diretor Paulo Nascimento, inspirado na ativista ambiental sueca Greta Thunberg). Você tem alguma preocupação com isso?
Preocupação normal de mãe, de saber se ela está bem, se está fazendo o que gosta. E ela deixa claro que esse é o caminho da vida dela. Ela ama estar na estrada, estar com o avô, os tios, os primos. É lindo ela tão cedo ter achado esse lugar, não só na família, mas na vida.
Você gravou clips com o É o Tchan e a Banda Eva, aos 10 anos. Hoje, entra dançando no show dos Gil. Qual a importância da dança na sua vida?
A dança para mim é tudo. O tempo que morei em Nova York [foram quase oito anos] fazia dança africana. Aquilo foi fundamental para eu conseguir atravessar os momentos de saudade. De casa, do Brasil, do calor, do afeto. Saudade do Carnaval. A dança, principalmente as com tambor, realmente me cura, me liberta.
Você se separou em janeiro. Mas diz que seu casamento, que durou 19 anos, sempre foi aberto. Qual era o combinado de vocês?
Mais recentemente começou a se falar sobre outras possibilidades de casamento e eu falei como era o meu. E aí rotularam: “A Bela Gil tem relacionamento aberto”. Só que eu não abri o casamento, sempre foi assim. O bom de tudo isso é que cada vez mais as pessoas estão entendendo que a gente pode sair do sistema tradicional institucional da monogamia. A gente não tinha um combinado só. “Ah, este ano ficamos assim e funcionou muito bem, então vamos estender.” Ou: “Não está dando certo, não gosto de te ver com fulano”. As coisas são negociáveis, maleáveis e coexistentes.
Recentemente você disse que é sapiosexual.
Outra coisa que rodou. Eu me atraio por pessoas inteligentes, cultas. Sou muito mais atraída pelo cérebro do que pelo corpo. E aí eu estava conversando com um amigo e ele disse: “Você é sapiosexual”. Entrei no Google e vi que realmente sou essa pessoa. Esse nome ficou na minha cabeça e aí falei em uma entrevista e todo mundo comentou. Mas é verdade.
Sente falta de alguma coisa na vida de casada? Como tem sido para as crianças?
As crianças estão ótimas. Porque o nosso amor transcende esse lugar de casamento. Uma coisa que a gente quis e conseguiu manter é a nossa amizade e a nossa cumplicidade como pais. Eu admiro muito o modo como ele enxerga e pratica a paternidade. E a gente também continuou trabalhando junto. A gente não fica mais, não mora junto, mas de resto meio que a vida continua igual.
O Brasil vive uma epidemia de obesidade. Existe alguma maneira rápida de mudar esse panorama?
O jeito é na educação, mas também na proibição. É preciso dar limite ao acesso a esses alimentos. E isso dá pra fazer de várias formas: tanto proibindo a venda em alguns lugares quanto taxando esses produtos, porque muitos deles são inclusive subsidiados por isenção de imposto. É fazer com que esses produtos não possam ser vendidos em escolas, em hospitais, em qualquer lugar.
Você distribui absorventes e coletores menstruais em comunidades de baixa renda. Acha que está longe de o governo assumir essa responsabilidade?
Passou uma lei pra distribuição de absorventes em postos de saúde, mas a gente precisa ir além. O direito ao saneamento básico, por exemplo. Não adianta dar coletor se a pessoa não tem como usar.
Se considera uma mulher negra? Já viveu uma situação de racismo?
Demorei a me sentir confortável nesse lugar porque não tinha sofrido como uma mulher mais retinta ou mais pobre que eu. Achava que não tinha esse direito. O racismo acontece mais indiretamente. Acho que não seria tão ridicularizada se não fosse uma mulher preta. O próprio churrasco de melancia, que virou meme. Se fosse feito por um homem branco, talvez achassem genial.
Você está na televisão há quase dez anos como chef. Agora vai estrear no Saia Justa, que é um programa de debates. Dá um medinho?
A minha tensão é porque sei que muitas coisas que penso e faço de maneira genuína são um escândalo para algumas pessoas. O Saia é uma exposição enorme, mas meu lugar não é o de criadora de polêmicas. Na verdade, nunca criei uma polêmica, as pessoas que criam polêmicas em cima de mim. Se alguém passou ali e teve um bom momento, já está maravilhoso. Agora, se conseguiu, com alguma coisa que eu falei, melhorar algum hábito que ela achava impossível, vai ser muito bom.
Como foram os primeiros encontros com as integrantes do programa?
A gente super se entrosou. Acho que o quarteto está bem equilibrado no sentido de diversidade de opiniões, de estilo de vida. Acho que enriquece a gente poder, no ar, discutir, divergir, rir, chorar. Esses últimos seis anos fizeram com que a gente não conseguisse mais debater, respeitar a opinião do outro. O Brasil está precisando entender que é possível debater de modo civilizado, respeitar opiniões diferentes.
Existe alguma organização familiar, nesse momento, em torno da Preta?
Sim. Eu estava com ela no hospital quando recebemos a notícia do câncer. E, de alguma maneira, fiquei aliviada com a forma que ela reagiu, que foi muito tranquila. Ela está superbem assistida pelos médicos, a mãe e o marido estão em casa com ela. Todo mundo sempre que pode vai encontrá-la, a gente tem um grupo de WhatsApp onde se fala o tempo todo, pergunta tudo. Ela manda mensagens, fotos. A tecnologia ajuda a gente a se manter unido.
Para terminar, o que cada um pode fazer para começar a mudar a alimentação no Brasil e como isso impactar o país como um todo?
Comprar do produtor, assinar uma cesta de orgânicos, já tira você da lógica mercadológica do alimento. Depois, é ter uma composteira. Uma casca de banana no aterro produz gás de efeito estufa, e a gente pode transformar isso ou em energia ou adubo. Trocar o supermercado pela feira também. Faz muita diferença pegar uma fruta no lanche em vez de uma coisa embalada. Comprar uma castanha-do-pará que vem de uma comunidade extrativista é maravilhoso. Você está conseguindo apoiar aquele povo a se manter naquele território, mantendo a castanheira e a floresta em pé. Pequenas práticas mudam a consciência da sociedade.