Por Rute Pina
Publicado no Universa

 

De voz aguda, sotaque sulista e pouco afeita à tecnologia. Não trocava mensagens de texto nem e-mails, só falava por telefone. Atenciosa, ao mesmo tempo em que não poupava críticas. Gostava de cores vibrantes, as preferidas eram o amarelo e vermelho, e adorava a pintora mexicana Frida Kahlo. Não usava brincos e gostava de comprar roupas em brechós.

Assim, a intelectual americana bell hooks, um dos mais importantes nomes nos estudos de raça e gênero e que completaria 70 anos neste domingo (25), é descrita por amigas próximas ouvidas por Universa.

bell, nascida com o nome Gloria Jean Watkins, escolheu o pseudônimo escrito com letras minúsculas para homenagear sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. Autora de mais de 30 livros, da literatura infantil à crítica cultural, morreu em dezembro de 2021 por insuficiência renal.

 

‘Comunidade amorosa’ não era só na teoria 

Em sua obra, bell hooks discorreu sobre a importância da criação de laços comunitários. Amiga da autora por dez anos, a teórica feminista Stephanie Troutman Robbins, professora do Departamento de Estudos de Mulheres e Gênero da Universidade do Arizona, diz que, em sua vida, ela fazia exatamente isso: criava laços.

“Ela era muito aberta, especialmente para mulheres não brancas. Sentia a necessidade de se conectar. Sempre se interessou por feministas mais jovens e pessoas identificadas como trans e LGBTQ e realmente queria construir uma comunidade”, diz Stephanie em entrevista por vídeo a Universa.

“Ela realmente acreditava na importância e no poder de uma comunidade amorosa, onde seria possível mostrar, nesses espaços, todas as nossas imperfeições e diferenças e ainda encontrar um terreno comum e cuidado mútuo”, relembra.

A mesma lembrança tem Shadee Malaklou, professora assistente de estudos de gênero na Berea College, no estado americano do Kentucky, onde hoje é diretora do bell hooks center.

“Na primeira vez que ela me conheceu, olhou para mim e disse: ‘Fui contra a sua contratação’. Perguntei o porquê. Ela respondeu: ‘Simplesmente não consigo imaginar uma mulher iraniana encontrando qualquer tipo de comunidade em Berea”, conta Shadee, reforçando que essa foi uma preocupação de bell.

A autora, diz a amiga, era bastante crítica e, nas palavras de Shadee, não tinha “poker face” — termo usado para se referir à falta de expressão facial, como se a pessoa não se importasse com um tema ou conversa.

“Quando eu estava me divorciando, depois que meu marido me traiu com uma mulher que se declarava indígena, bell me disse: ‘Ele se casou com você para se livrar da branquitude dele e agora ele não precisa mais de você’. Ela foi muito honesta comigo. E, com isso, se tornou uma figura materna para mim”, diz a amiga. “Ela era o que Sara Ahmed [escritora anglo-australiana] chamaria de feminista desmancha-prazeres.”

“Ela me ajudava a tornar a política pessoal e perceber muitas coisas que são estruturais, mas se tornam pessoais”, diz, referindo-se a machismo e racismo, entre outras opressões. bell definia essa estrutura como o “patriarcado capitalista supremacista branco”.

 

Ausência de crítica no feminismo desapontava autora

Shadee conta que bell hooks —que dialogava constantemente com figuras como as atrizes Emma Watson e Laverne Cox— adorava cultura pop e devorava revistas. “Ela queria saber o que estava acontecendo no mundo. Não usava a Internet, smartphone ou computador. Então, muitas vezes eu mostrava a timeline do Twitter para ela e contava o que estava acontecendo no mundo”, diz.

A amiga relembra o ressentimento da autora com as críticas que recebeu após fazer comentários sobre o álbum visual “Lemonade”, de Beyoncé. Na época, bell apontou que a cantora estava seguindo uma cartilha capitalista. “Antifeminista, especialmente em termos do impacto que têm sobre garotas jovens”, escreveu na época, dizendo que Beyoncé era cúmplice de sua própria exploração.

“Ela estava fazendo uma crítica contextual que não era exclusiva de Beyoncé e Jay-Z, mas a quem cria uma renda do trabalho de outras pessoas e ao capitalismo”, analisa Shadee. “Para ela, a crítica feminista estava ausente no debate político, e ela viu isso na forma como a cultura pop estava se desenvolvendo.”

“No final de sua vida, ela estava muito preocupada de que o feminismo estava morrendo”, diz Shadee.

 

Amor-próprio acima de tudo

Stephanie Robbins diz que a autora praticava o que chamava de ética amorosa por meio de um radical amor-próprio.

“Mesmo que ela estivesse lutando com um conflito com alguém, mesmo que sentisse que estava sendo maltratada de alguma forma, ela sempre esteve enraizada nesse amor-próprio radical e no autocuidado.”

“Ela tinha uma prática budista e uma educação cristã e combinou as duas coisas. Sempre se chamou de cristã budista, o que incomodava algumas pessoas. Mas era uma descrição precisa de como ela se via espiritualmente. Isso trouxe uma espécie de calma e aceitação a ela.”

Apesar de se ter como prioridade, assim como sua independência, bell queria um parceiro, diz a amiga. “Ela queria muito um amor no final de sua vida. Queria intimidade, não sexo. Às vezes brincava: ‘Se divorcia e se casa comigo’. Não era algo que tinha conotação sexual. Era sobre companheirismo”, diz.

 

Tudo sobre o amor: o grande, e mal-interpretado, livro de bell hooks 

De todos os livros publicados no Brasil, Tudo sobre o amor é o que tem despertado maior interesse, opina Tadeu Breda, fundador da editora Elefante, que quer publicar toda a obra de bell em português.

Isso também fica explícito na quantidade de publicações de Twitter que lembram que “o amor é uma ação”. Curiosamente, nos EUA, o livro também entrou na lista dos mais vendidos do New York Times meses depois da morte de bell e 23 anos após a primeira publicação nos EUA. “Vi algumas pessoas dizendo que a gente está vivendo um momento de muito ódio e que querem ler sobre o amor. É difícil saber o porquê, mas uma característica interessante desse livro é que acho que ele é mais palatável que outros dela.”

Shadee diz que Tudo sobre o amor era um dos seus livros favoritos de bell. “Acho que é porque há um afastamento do trabalho acadêmico —ela estava cansada desse mundo. É uma abordagem filosófica profunda e correta para essa coisa que é uma palavra que jogamos por aí e sobre a qual falamos o tempo todo. Ela novamente foi capaz de trazer perspectivas críticas e interessantes para o conceito.”

Mas, faz uma ressalva: o livro está sendo mal-interpretado. “As pessoas estão lendo de forma muito acrítica e sem o contexto de outros trabalhos’. bell queria que pensássemos sobre nossas diferenças. Para ela, o amor é um projeto político. E, na crítica, há amor.”

 

Editora brasileira quer publicar toda obra em português 

A obra de bell hooks demorou para ser oficialmente traduzida no Brasil. Até 2018, traduções independentes de feministas eram compartilhadas na internet, criando uma comunidade engajada de leitores brasileiros.

Há quatro anos, a editora Elefante publicou o livro Olhares negros e comprou direitos da publicação de outras obras da autora. “Durante a edição, gostei muito do jeito como ela escreve: é incisiva ao mesmo tempo em que não fecha portas”, diz o editor Tadeu Breda, fundador da Elefante. “Defende suas ideias com muito vigor e dureza, mas sempre buscando o diálogo. Isso me pareceu extremamente importante, relevante e necessário para o momento político que começamos a viver.”

A ideia da editora é publicar todos os livros da autora em português, diz Tadeu. Neste ano, estão previstos cinco lançamentos de suas obras, sendo que três já estão disponíveis: A gente é da hora, Escrever além da raça e Pertencimento.

Os livros Cultura fora da lei: representações de resistência e Cinema vivido: raça, classe e sexo nas telas serão publicados até o fim deste ano. No início de 2023, por sua vez, chega Salvação, obra que integra o que a autora chamava de “trilogia do amor”.

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