Do agronegócio ao agrodesvario

Maioria das indústrias poderia posicionar-se de forma mais assertiva sobre conservação da biodiversidade

Por José Eli da Veiga
Publicado no Valor Econômico

 

Está chegando às livrarias uma obra extremamente útil a todos os que quiserem conhecer o processo ironizado no título desta coluna. Em Formação política do agronegócio (Editora Elefante), o pesquisador Caio Pompeia (USP) oferece minuciosa análise histórica, desde as origens da expressão “agribusiness”, nos anos 1950, até à atual postura irresponsável dos ruralistas brasileiros sobre os desmatamentos, causa do aumento das epidemias. Correndo o risco de incomodar o autor, segue, a título de aperitivo, uma das possíveis leituras sintéticas.
Desde o início dos anos 1990, não faltaram esforços para persuadir amplos segmentos da opinião pública de que a agropecuária deveria passar a ser vista como a parte central do imenso aglomerado de cadeias industriais e de serviços, desde as fornecedoras, até as transformadoras de seus produtos. Demorou, mas deu certo: na virada do milênio, mais ninguém estranhava o neologismo “agronegócio”.

No entanto, por volta de 2010, as lideranças de tão exitosa empreitada acabaram por se arrepender de terem adotado, como identidade, a mera tradução de “agribusiness”, conforme proposta analítica, nascida em Harvard, nos anos 1950. Foi assim que emergiu a nova marca “agro”, logo reforçada pelo slogan “o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”, do projeto “Agro: a Indústria-Riqueza do Brasil”. Vídeos, exibidos no horário nobre, pelas principais redes de televisão, chamavam a atenção para os vínculos entre produtos agropecuários e artigos de grande consumo. Quando um falava em soja, aparecia um litro de óleo; quando o outro falava em algodão, surgia uma camisa. Uma atriz dizia “sou agro, agrobrasileira”, outro respondia “sou agrocidadão, sou agroator, sou agrobrasileiro”. Depois pulularam “agroestudantes”, “agrocooperados”, “agroestilistas”, “agrotaxistas” e até “agromães”.

Tal virada comunicativa contribuiu, muito mais do que se imagina, para reforçar a articulação política dos principais agentes do heterogêneo amontoado de interesses setoriais, disperso em mais de cinquenta organizações, até ali sob instável liderança de um quarteto: Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), Cosag (Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp) e FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária).

Mas também foi um contexto dos mais propícios à emergência, em 2011, da primeira iniciativa com vocação a exercer considerável hegemonia ideológica: o IPA (Instituto Pensar Agropecuária). Ele pretende ter papel singular na institucionalização da agenda do “setor” (sic), com o objetivo de garantir o respaldo técnico a ações específicas que tramitam no Congresso Nacional, além de promover a interlocução com os poderes Judiciário e Executivo. Hoje, composto por 44 entidades responsáveis por levantar agendas de debates, funciona como principal interlocutor entre as entidades da cadeia produtiva rural e os parlamentares envolvidos na causa.

O grande impulso para a ascensão do IPA foi o tumultuado processo que resultou na extinção do Código Florestal pela lei 12.651/2012, em explícita negação do estratégico papel da biodiversidade. Mas acabou por ser ainda mais importante sua precoce adesão ao projeto de Michel Temer. De uma dezena de associações que inicialmente mantinham seu escritório brasiliense, em 2016, o instituto passou a contar com 38 e boa representação industrial.

Na tenebrosa conjuntura pós-Temer, começou a ser muito frequente na mídia a expressão “racha do agronegócio”. Todavia, é o IPA, com suas quase cinquenta associações empresariais, a vanguarda que pauta a Frente Parlamentar da Agropecuária. Também houve maior aproximação da CNA com o IPA, mesmo que as duas representações continuem a competir por proeminência. A Confederação havia aceitado, após muita relutância, tornar-se membro oficial do Instituto, e agora, em 2021, inseriu seu principal assessor como presidente. O funcionamento eficaz da concertação entre IPA, CNA e FPA será central para determinar que agendas terão mais força no Congresso e no Executivo Federal. O propalado racha no agronegócio é sobretudo programático, com mais matizes nas agendas relacionadas a quaisquer questões socioambientais. Os segmentos mais extremistas ganharam ímpeto, ocupando o Ministério do Meio Ambiente. De fora, segmentos sociais pró-biodiversidade conseguiram montar, em 2015, uma ampla frente, capaz de apresentar propostas antagônicas: a “Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura”. Com isso, o fiel da balança tem sido a engrenagem IPA/FPA, que será mais forte, se conseguir administrar suas diferenças com a CNA.

É muito importante notar, contudo, que a maioria das indústrias que apoiam as pautas sustentáveis na Coalizão têm, simultaneamente, considerável inserção no IPA. Poderiam, portanto, posicionar-se de maneira mais assertiva no instituto, em agendas que, direta ou indiretamente, relacionam-se a direitos humanos e conservação da biodiversidade. Assim como sobre as questões indígenas, tema do belo prefácio da professora Manuela Carneiro da Cunha.

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