Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 

Então o representante brasileiro na ONU subiu ao púlpito e disse:

“Devemos condenar não só as armas, como também os ideais guerreiros e todos os que se aproveitam dos progressos pacíficos da ciência para fomentar a guerra e a destruição, em lugar de procurar, com tais progressos, aumentar o bem-estar dos povos.”

Já pensou o orgulho de acordar com uma manchete dessas estampando os jornais? Na atual conjuntura parece sonho, mas aconteceu mesmo em 1947, quando o brasileiro Oswaldo Aranha deu uma aula na abertura da segunda Assembleia Geral das Nações Unidas. O mundo acabara de derrotar o nazifascismo na bala, e agora a ONU se apresentava como alternativa de esperança. Oswaldo vestiu tão bem o manto dos direitos humanos e do respeito aos povos que desencadeou uma tradição: desde esse dia, é o Brasil que abre toda Assembleia Geral.

Essa é a bela herança sobre a qual nosso presidente Messias defecou pela boca no último 22 de setembro, quando abriu a septuagésima quinta Assembleia Geral. Os absurdos foram tantos e em tal volume que o rapaz do estábulo da ONU precisou recolher com uma grande pá de metal toda a merda proferida em plenário pelo mandatário brasileiro.

Não será preciso mais do que as seguintes aspas para enjoar qualquer um: “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas. Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação”.

Poderíamos agora descascar cada linha falaciosa desse desastre, produzindo um exercício de textão certamente prazeroso. Mas não, na verdade só passamos para deixar na sua mesa este Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento, publicado por Elefante e Autonomia Literária em 2016.

Miriam Lang, Gerhard Dilger & Jorge Pereira Neto, da Fundação Rosa Luxemburgo, são os organizadores do livro, que reúne treze ensaios críticos à integração subordinada da América Latina ao mercado neoliberal, sempre clareando a urgente necessidade de renovação política na região.

Renovar horizontes

Os ensaios colocam em xeque a busca desenvolvimentista, esse imperativo capitalista que exige crescimento permanente e índices ilusórios, como o PIB, sempre ascendentes — ainda que, para fazê-lo, comprometa as bases ecológicas da própria riqueza.

“Quando se lê ‘extrativismo’, os autores estão se referindo à remoção de grandes volumes de recursos naturais destinados à exportação, não se limitando aos produtos minerais ou ao petróleo. Trata-se de uma ênfase na reprimarização da economia, que, para ser efetivada, quase sempre requer um sistema político pouco democrático. Sem diálogo com as necessidades locais do território, necessita de um Estado repressor para impor sua racionalidade diante de qualquer dissidência e, dessa maneira, manter uma divisão desigual de seus rendimentos.”

O texto foi escrito há quatro anos e em tudo antecipa a postura de nosso presidente Messias. Sofra um pouco mais com essas aspas, cometidas na ONU em seu nome: “Nosso agronegócio continua pujante e, acima de tudo, possuindo e respeitando a melhor legislação ambiental do planeta. Mesmo assim, somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”.

Diversas cartas de repúdio já foram escritas e publicados dentro e fora do país, e Messias continua lá. Mentiu abertamente (como sempre faz) e nada mudou (como nunca muda) porque a ONU, tão otimista quanto sem alcance prático, sofre do seguinte:

“As negociações internacionais para estabelecer promessas conjuntas de redução desse impacto nos sistemas de vida do planeta têm sido, até o momento, um estrepitoso fracasso. A lógica mercantil tem condicionado todas as decisões. A economia verde, apresentada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, não faz senão repetir promessas fantasiosas. Assegura que é possível chegar a um mundo ambientalmente sustentável, com emprego e bem-estar para todos, sem necessidade de alterar as relações de poder, a lógica de acumulação ou as profundas desigualdades atuais. A magia está em executar determinados mecanismos de mercado e soluções tecnológicas.”

As ponderações são de Edgardo Lander, sociólogo venezuelano autor de “Com o tempo contado”, um dos ensaios de Descolonizar o imaginário que se presta a deixar claro o tamanho da urgência e a ineficiência dos sistemas políticos estabelecidos para lidar com o colapso ambiental.

A obra sugere uma alternativa: construir narrativas radicalmente polifônicas e diversas como horizonte político de transformação. A saída possível é genuinamente ouvir e respeitar a pluralidade de povos que aqui habitam, há milênios em equilíbrio com seus biomas. Quem sabe aprendemos uma coisa ou duas que nos permita sair desta encalacrada?

Estamos orgulhosos de terminar este texto tendo resistido à tentação de rebater muito racional e jornalisticamente cada ponto falso do presidente Messias. Debater esse atraso é rolar na merda com ele. Focamos, então, o desenvolvimento de nossas narrativas polifônicas. Deixamos essas aspas de despedida:

Descolonizar o imaginário contribui com o desafio de pensar além do imediato e construir horizontes emancipadores para nosso continente, a partir das necessidades expressas por nossos povos. Os tempos são de urgência. Reagrupar a energia social do continente, aprofundar nosso horizonte democrático e romper com o modelo primário-exportador que nos é imposto desde a colônia certamente são aspectos que constarão de qualquer proposta transformadora para a América Latina.”

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