Por Andrea Dip
Publicado no Uol Universa

 

“Por que você voltava todo verão? Gosta de sofrer?”. Foi o que a escritora argentina Belén López Peiró ouviu de um familiar quando, após 10 anos em silêncio, finalmente criou fôlego para denunciar os abusos sexuais que viveu dos 13 aos 16 anos, por parte de um tio policial quando passava as férias na casa de parentes.

No livro Por que você voltava todo verão?, lançado esta semana no Brasil pela editora Elefante, a autora descreve as cenas de violência de maneira crua, sem mastigar as palavras. E recorre à polifonia narrativa usando trechos de documentos judiciais e vozes de advogados, profissionais da rede de saúde, amigos, familiares e promotores para contar sua história.

Em conversa promovida pela editora na última terça-feira, (28), discutíamos (eu, Belén, a psicóloga Evilânia Santos e a jornalista Isadora Attab) sobre como os abusos sexuais na infância e na adolescência por tantas vezes nos colocam em um lugar solitário e silencioso. Principalmente nos casos envolvendo crianças que muitas vezes nem são capazes de nomear ou elaborar a que foram submetidas — e o quanto na verdade essa é uma questão coletiva, estrutural, cheia de padrões e que deve ser encarada e discutida como tal.

Belén dizia na conversa que sua intenção foi mesmo a de publicar um livro incômodo, duro, difícil de ler, algo que é posto na sua frente e você não tem outra saída a não ser encarar. Porque assim também foi para ela revisitar suas memórias.

Uma vez ouvi de uma psicanalista que entrevistava que quando alguém se movimenta, todo o entorno se realoca. E assim acontece nos casos de abusos intrafamiliares – que correspondem a 80% hoje no Brasil. É dentro de um círculo de afetos, confiança, muitas vezes admiração e poder que eles começam, imprimem marcas profundas não apenas em quem sofre mas em toda a família.

Quando esses abusos são finalmente denunciados, por vezes se desdobram em situações de novos abusos psicológicos perpetrados por outros atores, em que as vítimas são questionadas, culpabilizadas, desacreditadas. “Por que você voltava então?”, “Por que usava essa roupa?”, “Por que não contou antes?”.

Recentemente, escrevendo sobre uma situação específica, tive um encontro difícil com algumas memórias. Isso acontece muito quando se é jornalista mulher denunciando violência de gênero: sempre dói. Sempre é possível se reconhecer ou lembrar de pessoas que você ama ao apontar o microfone para a dor de outras mulheres.

O livro e a conversa com Belén também me marcaram muito, sobretudo quando ela diz que escrever sobre o que passou a fez retomar a própria história, sair do lugar de submetida, de vítima enquanto um conceito que se encerra em si. Denunciar seu agressor e todo o sistema que deveria proteger e acolher mas que, por questões de misoginia estrutural, revitimiza, culpabiliza e questiona quem sofre violência sexual, foi sua maneira de se posicionar diante de seu agressor e “desfazê-lo com palavras, acabar com ele, fodê-lo entre vírgulas” como diz um trecho do livro.

Agradeço a Belén e a todas as mulheres a quem tenho apontado o microfone ao longo dos anos que de maneira tão corajosa contam suas histórias e denunciam seus agressores. Que a gente possa se inspirar nelas e cada vez mais jogar no mundo as nossas histórias incômodas, cruas, não mastigadas, até que não seja mais possível que a sociedade e as instituições não as encare de frente, de uma vez por todas.

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