Por Verónica Gago
Publicado no Página 12
A greve e a mobilização deste 8 de março não será corriqueira. Acontecerá após dois anos de uma pandemia que obrigou o movimento feminista a se reinventar nos territórios, a ter menos possibilidades de ocupar as ruas massivamente e a mergulhar em formas de organização menos visíveis, porém persistentes.
Isso complexifica a mobilização em si: temos que lutar contra o isolamento, contra uma maior precariedade acumulada em nossos bolsos e corpos, e contra o esgotamento de um período de exceção de dois anos. Em segundo lugar, é um 8M que repleto de situações nas quais o movimento feminista está intervindo de maneira incontornável: a negociação da dívida externa na Argentina, o processo constitucional no Chile, as campanhas contra as reeleições no Brasil e na Colômbia – com o novíssimo aborto livre! –, a discussão do referendo contra as leis da coalizão governante no Uruguai, para citar alguns dilemas regionais.
Em diferentes países da Europa, onde uma renomada antiabortista acaba de ser eleita presidente do Parlamento Europeu, a intervenção antifascista é transversal, contra uma direita que se fortalece com discursos antifeministas e anti-imigração. Isso evidencia uma constatação: os feminismos não propõem apenas agendas isoladas e pontuais, mas uma política de transformação social em disputa direta com esses tempos reacionários.
Como está sendo preparado este 8M em diferentes geografias? Quais são, desta vez, “as questões que movimentam”, para evocar a preciosa fórmula da feminista chilena Julieta Kirkwood? Com que consignas é tecido o texto das ruas? O que você pensa quando convoca uma greve e um dia de luta histórica? Que horizontes os feminismos consideram para imaginar o futuro? Aqui está uma cartografia parcial para traçar orientações coletivas, compartilhar estratégias e, mais uma vez, mostrar a força internacionalista que faz do movimento feminista uma maré de múltiplos ritmos e afluentes.
Recuperar o tempo e a rua
Enquanto a pandemia e suas rotinas desordenadas em prol de mais trabalho remunerado e não remunerado, misturado com as agruras da doença e da morte, parecem esmagar o tempo, os feminismos falam sobre futuro. No dia 25 de novembro, circularam duas bandeiras que chamavam a atenção para o verbo compartilhado. A Coletiva Feminista En Construcción, de Porto Rico, estendeu sobre uma ponte um enorme tecido que dizia: “Tempos melhores virão, nós os estamos construindo”, e a Coordenadora 8M do Chile ergueu lenços roxos com a frase: “A greve feminista está chegando. 8M”. Não se deixe arrebatar pelo que está por vir; formular no aqui e no agora o que virá é, sem dúvida, uma potência política. Ainda mais em um momento em que arranjar tempo para nos organizar – e, portanto, interromper o fluxo interminável de tarefas e preocupações, refletir juntas e avaliar para onde estamos indo – é uma das tarefas mais difíceis.
Na Argentina, já se organizam várias reuniões, assembleias e coordenações. Estamos de volta às ruas? Nós nunca saímos? Algumas conversas giram em torno desse eixo. Do sindicalismo, Ana Lemos, Secretária do Interior da União de Trabalhadores de Olarias da Argentina (UOLRA), diz: “Nunca saímos das ruas porque estávamos colocando nossos corpos de outras maneiras, de outro lugar. Depois de dois anos, realmente precisamos dessa mobilização. Reunir-se e mobilizar-se novamente nos parece central e nos ajudará a marcar e expandir uma agenda feminista ao longo do tempo. Cada 8M nos ajuda a gerar mais organização”.
Este diagnóstico também é feito por Dina Sánchez da UTEP: “A pandemia nos prendeu, mas não deixamos de colocar nossos corpos na luta”. Dina é uma referência na resistência ao projeto de “converter” a assistência social em trabalho “genuíno”. “As pessoas continuam acreditando que cuidado não é trabalho”, acrescentou. Johana, da organização La Garganta Poderosa e da Casa de la Mujer de la Villa 31, destaca a importância de reivindicar salários para agentes comunitários, ressaltando que ninguém se questiona sobre quem cozinha as toneladas de comida das cozinhas populares. Contar o que aconteceu na pandemia, como acontece em todo encontro feminista quando você volta ao presencial, faz parte de listar coletivamente o que foi feito, onde você estava e, ao mesmo tempo, narrar por que é preciso voltar à mobilização coletiva.
Da cidade de Neuquén, Ruth Zurbriggen, da coletiva La Revuelta, que já vem realizando suas reuniões, explica: “Precisamos reconstruir o enredo, isso tem que ser parte do que nos move em direção aos 8M para ocupar as ruas com essa poderosa teia de aranha que sabemos produzir a partir dos feminismos”. Se a greve durante esses anos foi um processo de múltiplas formas, hoje essa dinâmica é impactada por espaços domésticos mais carregados, com cartões SUBE [bilhete de transporte] sem crédito, com um cansaço produzido pelo enfrentamento incessante das emergências diárias e dos malabarismos para que o dinheiro dure mais. “Teremos que colocar nossas pautas em meio a um debate envenenado pelo tema da dívida externa, que não será paga por aqueles que fugiram com os milhões que pegaram emprestados”, acrescenta Ruth.
Os eixos que já estão sendo debatidos em muitos espaços colocam a questão da dívida no centro. “La deuda es con nosotres” [A dívida é conosco] é uma consigna que vem sendo levantada desde 2020 para conectar reivindicações trabalhistas, territoriais, econômicas e antiviolência, e que se conecta com o slogan de 2018: “vivas, livres e sem dívidas nos queremos”. Mas, agora, é mais urgente do que nunca, em meio às negociações com o FMI.
Luci Cavallero, da coletiva Ni Una Menos, aponta: “A denúncia do endividamento externo não é nova; desde 2018, quando o governo de Mauricio Macri nos levou ao pior processo de endividamento de nossa história, os feminismos têm argumentado que a dívida externa é uma guerra contra a possibilidade de viver uma vida livre de violência, contra a possibilidade de aumentar os orçamentos para as políticas de gênero e reparar as desigualdades que arrastamos. É por isso que a estrutura deste 8M é especial: temos um inimigo que claramente vai tentar cortar direitos e se chama Fundo Monetário Internacional. Devemos discutir a dívida em todas as suas dimensões (sua legitimidade, seus cúmplices locais que enriqueceram e fugiram desse dinheiro, suas formas de chantagem no dia a dia) e não apenas no 8 de março, mas até que não haja um único funcionário do FMI na Argentina”.
Atuar em tempos turbulentos
A questão do trabalho também atravessa diagnósticos e reivindicações: reconhecimento salarial para funções de cuidado, debates sobre como os empregos que começam a se “recuperar” após a pandemia são mais precários, eleições paritárias e a sobrecarga psíquica que não desaparece com a volta das atividades presenciais.
A urgência antiextrativista também é fundamental neste momento, pois é responsável pelas secas e incêndios sem precedentes que recentemente varreram a Argentina e afetaram diretamente os preços dos alimentos. “Este ano não poderemos fazer verdurazo [verdurada] no 8M”, anunciou Rosalía Pellegrini da Secretaria de Gênero da União de Trabalhadores da Terra, “porque a seca reduziu muito o que podíamos colher”.
Regionalmente, o desafio à violência patriarcal do sistema de justiça e à reação conservadora, antidireitos LGBTQ+ e anti-imigrante atravessa transversalmente a mobilização. Nesse sentido, a coletiva NiUnaMigranteMenos fará intervenções neste 8M, tornando visíveis as reivindicações transfronteiriças; também a campanha pela “liberdade de Laura Villalba, o aparecimento de Lichita viva e por justiça para as duas meninas assassinadas” no Paraguai.
No Chile, a greve feminista terá como lema “Vamos pela vida que nos devem!”, que veio sendo preparada no encontro plurinacional das mulheres que lutam. Por isso, Wayra Villegas, nova porta-voz da Coordenadora 8M, destaca que a preparação da greve “é um processo coletivo e contínuo que leva ao 8M”. O que se anseia dias depois que Gabriel Boric assumiu a presidência? Em uma lista feita à mão em uma das assembleias desses dias, lia-se que se espera “ser uma maré nas ruas”, “nova constituição”, “chegar a todos os territórios”, “contra a impunidade de Piñera”, entre outros. “Uma das grandes questões mobilizadoras, para citar Kirkwood, é sobre essa dicotomia entre instituições e movimentos sociais, porque o desafio é entrar e transformar a institucionalidade patriarcal; agora estamos na primeira fila e nossa força implica um compromisso com uma democracia conjunta, plurinacional, sem-teto, para superar o modelo neoliberal. Isso nos leva a estar na instituição como um exercício constante de transformação do país”, completa.
“A situação que é marcada por um ciclo de mobilizações que foram atravessadas pelo contexto pandêmico, e é por isso que estamos num processo de recuperação das ruas, do espaço público e da mobilização”, acrescenta Javiera Manzi, também membra da coordenação e envolvida na constituinte. “Mais de perto, enfrentamos o fim do governo Piñera, que sai com total impunidade após ter sistematicamente violado os direitos humanos. Também estamos à beira de uma mudança de comando que só é possível, entre outras coisas, pela força feminista, de mulheres e dissidentes que tiveram uma potência gigantesca para frear o avanço da extrema direita que enfrentamos no segundo turno. Enfim, estamos em meio ao processo constituinte do qual fazemos parte, construindo uma alternativa a partir do povo, onde se articulam horizontes emancipatórios que abrem caminho para um Chile plurinacional, pós-extrativista, com protagonismo popular e feminista em seu coração.”
O ano de 2022 vem com uma agenda eleitoral carregada, mas decisiva no Brasil. “Aqui, estamos passando pela pandemia com um governo negacionista, que deixou o povo à própria sorte. Hoje temos mais de 600 mil mortes por covid, desemprego recorde, aumento da violência contra a mulher, fome e miséria. Enfrentar essa realidade tem que passar diretamente pela derrota de Bolsonaro e seu projeto misógino, racista e excludente”, disse Mônica Benicio, companheira de Marielle Franco, deputada feminista e lésbica. “Por isso, neste 8 de março, vamos gritar #ForaBolsonaro pelos quatro cantos do país!”, entusiasma-se.
Outra rede de coletivas no Brasil também convoca o 8M com a proposta “Maré Feminista Fora Bolsonaro”, e defendem a mesma coisa: em ano eleitoral, derrotar o atual presidente é a tarefa mais importante, e a lista de motivos é conhecida, embora chocante. Destaca-se que o Ministério da Mulher, a cargo da antiabortista Damares Alves, foi transformado em um “centro de ódio”, orientado por políticas antigênero e fundamentalistas contra o aborto legal; ao mesmo tempo, houve o aumento do assassinato de pessoas negras em suas comunidades, no trabalho e nos supermercados, “incentivado pelas declarações racistas presidenciais”.
No Uruguai, o Tecido Feminista, formado por coletivas feministas, camaradas de sindicatos, cooperativas de habitação, arte, comunicação e educação, vem se reunindo em praças e realizando diferentes atividades de “preparação”. Concordaram em fazer greve e marchar em direção ao mar: “Nossa greve é pelo trabalho produtivo e reprodutivo, nosso desejo é ter tempo para nós mesmas e entre nós. Este ano também optamos por enfatizar que nossa luta é antiextrativista, porque nos preocupamos com o ecocídio e as múltiplas desapropriações em nossos territórios, e porque sabemos que a vida se sustenta na interdependência. É por isso que neste 8M nos convocamos a marchar em direção ao mar e dizer que ‘Somos água quando a realidade é pedra'”.
No Equador, o contexto é difícil: nos últimos tempos, as forças do movimento feminista se concentraram em uma lei que legaliza o aborto por estupro que seja “justa e restauradora”. “Embora a lei tenha sido aprovada, não atende ao que o movimento buscava: os prazos estabelecidos são de doze semanas para adultas e excepcionalmente dezoito semanas para meninas, adolescentes e mulheres rurais. Além do fato de que o presidente pode vetar”, diz Ana María Morales, da coletiva Amazonas.
Diagnóstico da crise
Na Itália, a coletiva NonUnaDiMeno prepara uma carta aberta de convocação que termina com a consigna “A greve feminista e transfeminista é para todes”, com evocações que parecem homenagear bell hooks e seu compromisso com o feminismo para todo mundo. As questões de moradia, gastos acumulados com saúde, insegurança no trabalho e violência sexual estão entrelaçadas. Diz Maia Pedullà, do NonUnaDiMeno de Gênova: “É uma greve contra a violência patriarcal em todas as suas formas, em que uma das palavras-chave é a quebra do isolamento”. E acrescenta: “Este ano decidimos convocar os sindicatos de base, o que não era totalmente previsível, e é um sinal de relações políticas e de reconhecimento acumulado. Mas devemos ter em mente que estamos em uma situação de forte crise social, com crescente pobreza e precariedade. Na Itália, a inflação está em seu nível mais alto desde 1996, e a crise energética se traduz em aumento nas contas de eletricidade e gás”.
Nesse 8M, são urgentes as reinvindicações que destacam as demissões de trabalhadoras que tiveram de ficar em casa para cuidar de crianças e idosos: “Esta é uma das figuras mais macroscópicas da tendência pandêmica, juntamente com o aumento da violência machista. Também reivindicamos os direitos das pessoas LGBTQA+, que este ano viram como uma lei contra crimes de ódio foi rejeitada no Parlamento e que agitam as ruas do país há meses.”
A partir da Women’s Strike Assembly na Inglaterra se planeja uma mobilização nacional com protestos em várias cidades, com a consigna “Nos queremos vivas!”. Em Londres, em particular, a greve é convocada para denunciar a “violência policial e estatal contra as trabalhadoras do sexo”.
Em Berlim, a coletiva Aliança de Feministas Internacionalistas promove a consigna “Nós rompemos as fronteiras. Nós destruímos o fascismo”. Elas dizem: “Em Berlim sempre temos duas marchas no 8M: uma maior, onde também vão partidos e sindicatos, mista, com reivindicações explicitamente feministas, e outra liderada por coletivos de migrantes e mulheres racializadas que assumem a liderança em um compromisso de uma natureza internacionalista, anticapitalista, anticolonial e antirracista. Organizamos marchas para mulheres, lésbicas, travestis, trans e não binárias nos 8M e 25N com foco no racismo e nos crimes cometidos nas fronteiras, nas exportações de armas da Alemanha e nas continuidades coloniais dessas crueldades. É por isso que, para nós, a solidariedade e a resistência internacionalistas são fundamentais”.
Cultivar o internacionalismo
Na Espanha, a ativista feminista Justa Montero explica: “O contexto em que o 8M está acontecendo este ano aqui é a evidência dos efeitos da crise sanitária sobreposta à crise sistêmica que já vinha marcando nossas vidas: estamos falando sobre a precariedade em todas as esferas da vida, e a precariedade de vidas marcadas pela violência, as brutais violências machistas e a violência social que acarreta a desapropriação de recursos, moradia, direitos, serviços, terra, dignidade”. Para Montero, “os discursos e práticas antifeministas da direita e da extrema direita tão presentes na política ‘espanhola’ buscam criminalizar esse potente movimento feminista.
Como todos os anos, muitas consignas estão sendo levantadas, mas destaco uma, que é o apelo à manifestação de Madri: “Direitos para todas, todos os dias. Aqui estamos as feministas”. Onde estão as feministas? “Desafiando o sistema e tentando abrir alternativas para transformar nossas vidas em vidas dignas”, acrescenta. Em uma recente conferência sobre sindicalismo feminista em Madri intitulada “Organizar é começar a vencer”, elas compartilharam o aprendizado das greves juntamente com as lutas na pandemia, lideradas por trabalhadoras domésticas, trabalhadoras de plantações de morango, migrantes, professoras, trabalhadoras do sexo, trabalhadoras da saúde e inquilinos ameaçados de despejo.
Rafaela Pimentel, de Territórios Domésticos, fez uma síntese pensando em como reativar a mobilização: “precisamos de feminismos vingativos e combativos, mas também criativos. O exercício de recontar a greve nos sacode novamente com o que fizemos e nos permite pensar para onde queremos ir”. O 8M está em processo.
