Rio Grande do Sul: colapsos localizados, dívida ecológica e políticas públicas

Por Maristella Svampa
Publicado em elDiarioAR
Traduzido por NETSAL

 

A era do colapso localizado já começou, como escrevemos há pouco tempo. Essa não é uma boa notícia, embora eu acredite que seja um ponto de partida inevitável para pensar e abrir outros horizontes para o futuro. É por isso que gostaria de voltar ao colapso ecológico e suas faces atuais; porque o colapso está entre nós, sem que isso signifique que o planeta acabará da noite para o dia ou em curto prazo, em uma espécie de apagão energético generalizado. Sem dúvida, a crise energética afetará gravemente nossos países e nossas vidas, mas é uma crise de médio prazo, embora alguns países — Cuba, Equador, Venezuela e muitos estados africanos, entre outros — já estejam sendo afetados por cortes gerais de energia por vários motivos, com todas as consequências que isso acarreta.

Feito esse primeiro esclarecimento, nesse “meio tempo”, estamos cada vez mais conscientes do que significa a aceleração da crise climática nos territórios. Agora, hoje, no curto prazo, como seres humanos que atravessam esses novos tempos do Antropoceno/Capitaloceno Pós-Pandêmico, vemos claramente que sofreremos cada vez mais o ataque letal de colapsos localizados, produzidos por eventos extremos catastróficos (e até mesmo por cadeias de eventos extremos que se reforçam mutuamente), como chuvas fortes, inundações, secas, incêndios, tornados, ventos fortes, ondas de calor e/ou ondas de frio, entre outros.

O que estamos vivenciando agora no Rio Grande do Sul é uma ilustração devastadora de um colapso localizado, que deve nos ajudar a pensar e a nos perguntar sobre quais podem ser nossas respostas como sociedade aos desastres climáticos. Nesse sentido, gostaria de apresentar algumas ideias que nos ajudam a entender o desafio que enfrentamos e nos colocam não apenas em um nível local, mas também em um plano multi-escalar, porque, afinal, a crise climática é global, mas tem impactos locais.

 

O drama do Rio Grande do Sul como um colapso localizado

 

Os acontecimentos recentes no Rio Grande do Sul nos mostram a face trágica e letal de colapsos localizados que podem se ampliar e assumir uma escala maior. No caso do Brasil, hoje, não foi apenas uma grande cidade colapsada (Porto Alegre), mas cerca de 497 municípios afetados. Até o momento, mais de 163 pessoas morreram; mais de 80 pessoas estão desaparecidas; mais de 640.000 pessoas foram forçadas a deixar suas casas, incluindo 65.000 que tiveram que se refugiar em escolas e outros espaços. A destruição não apenas continua — porque a chuva voltou — mas é imensurável, incontável e, para milhões de pessoas que perderam tudo ou quase tudo, nada voltará a ser como antes. A partir de agora, as vidas estão partidas.

Em termos de alimentação, as perdas são enormes e podem afetar a soberania alimentar brasileira. “O Rio Grande do Sul contribui com 12,6% do PIB agrícola do país. Quase 70% do arroz do Brasil e 13% de seus produtos lácteos vêm do estado, de acordo com um relatório da S&P Global, com sede nos EUA, divulgado em 13 de maio”, diz um artigo recente da AP. Em termos econômicos, grandes e pequenos produtores rurais, várias empresas — desde a indústria automotiva, com seu maquinário, até a indústria da carne — foram afetadas. A reconstrução será lenta e exigirá total colaboração entre os governos municipais, estadual e federal, sob o comando de Lula.

 

Responsabilidades (geo)políticas do desastre

 

Nesse ponto, é oportuno questionar as responsabilidades políticas e geopolíticas desse desastre.

Em primeiro lugar, em termos geopolíticos, não há dúvida de que o que aconteceu no Rio Grande do Sul está ligado à crise climática e deve colocar no centro das atenções a questão da dívida climática ou ecológica que os países do Norte global têm com o Sul global. É um truísmo que não são apenas os países do Norte e suas empresas petrolíferas — os Estados Unidos, a Europa — mas também as potências emergentes, como a China, hoje o principal emissor de CO2 do mundo, e a Rússia, uma potência exportadora primária (coloque-a na categoria geopolítica que melhor lhe convier), que são os principais poluidores de nossa atmosfera.

Eles não apenas criaram as condições para a atual crise climática, como a conhecemos hoje, mas também têm sistematicamente renegado em nível internacional a dívida ecológica que têm contraído com os países empobrecidos e periféricos, que, além de não serem responsáveis pela poluição, são os que mais sofrem com os múltiplos impactos da mudança climática atual, na forma de eventos extremos. A América Latina, por exemplo, é responsável por apenas 8% das emissões globais de CO2, enquanto a África responde por apenas 3%.

Para completar as voltas e reviravoltas do modelo imperial de dívida ecológica, são os países centrais que decidem sobre os “empréstimos” e a “ajuda” e suas modalidades de implementação — por meio de organizações internacionais — aos países do Sul, afetados por colapsos localizados, para tentar reconstruir suas sociedades e economias sempre “vulneráveis”, aumentando assim a odiosa dívida externa. Assim, no calor da crise climática, o círculo perverso entre a dívida ecológica e a dívida externa entra em uma espécie de reprodução ampliada.

Então, a primeira conclusão: na era dos colapsos ambientais localizados, a dívida ecológica e a dívida externa precisam ser urgentemente revisitadas com novas propostas internacionalistas do Sul global. É necessário cortar esse nó górdio antes que seja tarde demais. Ainda nem estamos falando de transição socioecológica, mas de adaptação à crise climática. E não há possibilidade de pensar em respostas eficazes e em larga escala para a crise climática a partir da periferia global, a não ser colocando o clima e a dívida externa no centro de nossas agendas públicas.

Em segundo lugar, nossos países são completamente inocentes diante da gravidade dos colapsos localizados associados à crise climática? Temos uma longa história de extrativismo, um produto de nossa inserção no sistema de divisão internacional do trabalho. Muito já foi escrito sobre isso. Como argumentam F. Cantamutto e M. Schoor, isso deu origem a um “mandato de exportação” que força nossas economias a se tornarem exportadoras de commodities ou produtos primários. No entanto, como os bons defensores da teoria da dependência disseram na década de 1970, a dependência tem um “exterior” (dominação externa), mas também um “interior” (elites cúmplices engajadas em um sistema de relações de poder — político e econômico).

O desmatamento na Amazônia, combinado com as mudanças climáticas globais, tem consequências devastadoras. Além disso, em nível regional, as mudanças no uso da terra e a expansão da fronteira do agronegócio são um dos principais culpados pelo desastre. Entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul, um dos centros de atividade da soja no país, perdeu 3,6 milhões de hectares de vegetação nativa, ou 22%, de acordo com uma rede liderada por Eduardo Vélez do MapBiomas, um consórcio climático de ONGs e universidades brasileiras. Isso foi exacerbado no contexto do governo Bolsonaro e suas continuidades.

Por exemplo, o Rio Grande do Sul é uma região governada por setores extremistas — nem todos bolsonaristas — que negam as mudanças climáticas. Sabemos que desde 2019 houve um desmonte agressivo das políticas ambientais pelo governador Eduardo Leite (PSDB) para favorecer os senhores do agronegócio, entre outros grandes empresários latifundiários. Sabemos que essa também não foi a primeira enchente, mas a quarta em menos de um ano, após as enchentes de julho, setembro e novembro de 2023, que mataram 75 pessoas.

Por fim, o atual governador foi advertido: o deputado Adão Pretto Filho (PT) argumentou que, “em sua opinião, as graves enchentes que afetam o Rio Grande do Sul poderiam ter sido evitadas ou ter tido um impacto menor, se o governo local não tivesse ignorado um relatório elaborado pela Comissão de Representação Externa da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Finalizado em agosto de 2023, esse documento apresentou diversas propostas para combater os efeitos das mudanças climáticas em vários municípios do estado”.

Portanto, atualmente, qualquer pessoa que olhe para o lado e acredite que a crise climática está dissociada do extrativismo, especialmente da expansão da fronteira petrolífera (e agora do fracking), bem como do desmatamento de milhões de hectares e das mudanças no uso da terra em favor do agronegócio, não está apenas agindo de má-fé ou exercendo o cinismo; também está contribuindo para o ecocídio. Em termos mais simples: considerando os estragos múltiplos e duradouros dos colapsos localizados, a associação entre a crise climática e o extrativismo agora assume características criminosas.

 

Esquecimento em tempos de aceleração

 

Tudo indica que os colapsos localizados se multiplicarão, afetando cidades e regiões inteiras, como aconteceu e continua acontecendo agora no Rio Grande do Sul, uma das áreas mais ricas e poderosas do Brasil. Entretanto, em tempos de memória curta, o esquecimento engole tudo em um ritmo acelerado.

Em setembro de 2023, houve um colapso localizado na Líbia. As fortes chuvas da tempestade mediterrânea Daniel causaram inundações letais no leste do país e duas represas romperam suas margens. Uma parede de água de vários metros de altura varreu a cidade costeira de Derna, matando mais de 11.000 pessoas. A consternação internacional foi grande. Durante dias, o mar estava lançando lama e cadáveres. Hoje, ninguém mais se lembra do que aconteceu na Líbia. O fato não aparece mais nos portais de notícias. Entretanto, quando os holofotes se apagam e a mídia deixa de olhar, no escuro, os danos persistem, amplificados pela normalização da catástrofe.

Esperemos que o que aconteceu no Rio Grande do Sul não seja engolido pelo olho míope do esquecimento e do tempo acelerado. E que essa dolorosa tragédia seja a plataforma latino-americana para invocar e reivindicar, mais do que nunca, a enorme dívida climática que os países do Norte têm com os países do Sul, bem como para questionar o negacionismo climático criminoso que está sendo disseminado atualmente em nossos países por setores de direita e ultradireita.

Precisamos urgentemente nos conscientizar de que vivemos em um planeta deteriorado e que nosso objetivo deve ser, portanto, proteger de danos maiores, com toda a nossa energia individual e solidariedade coletiva, tudo o que existe: vidas humanas e não humanas, territórios, ecossistemas e bens. Nosso imperativo histórico é repensar os modelos de desenvolvimento e implementar políticas públicas com um Estado presente (um Estado ecossocial), a fim de torná-los sustentáveis para a vida.

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