O que mais precisa acontecer para pôr fim à política de morte do Estado?
Por Paulo César Ramos
Publicado em Carta Capital
“Nem mesmo o luto de mães, a produção científica qualificada e o aumento da repercussão das denúncias têm sido suficientes para provocar lastros institucionais pelo fim do genocídio negro do Estado brasileiro”, avalia o autor de Gramática negra contra a violência de Estado.
Mês da Consciência Negra, o novembro que passou foi marcado por manchetes que repercutiram país afora dois casos de grande comoção pública: cinco anos após a morte de morte de Ágatha Félix, o policial militar Rodrigo José de Matos Soares, aponta-do como o autor do disparo de fuzil que matou a menina de 8 anos no Rio de Janeiro, foi absolvido pela Justiça. Na mesma semana do julgamento, Beatriz da Silva Rosa, cozinheira escolar, perdeu o filho mais novo, Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas 4 anos, durante uma ação policial em Santos, no litoral pau-lista. Ryan faleceu dez meses depois de seu pai, Leonel Andrade Santos, ser fuzilado, juntamente com o amigo Jefferson Ramos Miranda, durante a Operação Verão, que resultou em mais de 56 mortes na Baixada Santista.
As mortes de crianças periféricas comovem, mas a revolta parece não ser suficiente para provocar mudanças concretas, mesmo diante da extensa mobilização acadêmica e social que denuncia, há décadas, que tais casos não são isolados.
Sistematizar a memória da denúncia
Recém-lançado pela Editora Elefante, meu livro Gramática Negra da Violência de Estado aborda esse tema. Nele, revelo como, nos últimos 50 anos, o movimento negro moldou sua denúncia até chegar à palavra “genocídio”. Identifico uma evolução no entendimento do problema racial no Brasil, no qual a crítica à violência se radicalizou.
Inicialmente, o movimento negro interpretava a violência policial como um ato de discriminação racial, associado a fatores sociais e econômicos. Passamos por um novo período, em que a violência passa a ser reconhecida como de cunho racial, em que a brutalidade policial é um ato articulado para ocorrer a partir de um viés racializado. Quando chegamos ao genocídio, não é apenas um ato de violência. É um posicionamento do Estado, a assumir a condição de conflito contra a população.
Ao traçar uma linha do tempo da denúncia do movimento negro ao longo das décadas, conseguimos compreender por que o assassinato político de Marielle Franco não passou despercebido pela sociedade, incluindo suas dimensões de raça e gênero. Esse caso, uma brutalida-de contra uma mulher negra e periférica, refletiu uma percepção já consolidada de que um genocídio negro está em curso.
Por outro lado, esse momento foi fundamental para resgatar a memória das ruas, da militância que tensiona o Estado e gera conhecimento que nos ajuda a compreen-der melhor os processos políticos das instituições. No projeto Afro Memória, iniciado durante minha pesquisa de doutorado, os acervos pessoais de militantes são enviados à universidade pública, por meio de parceria com o Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp. Essa iniciativa legitima o conhecimento produzido fora dos muros acadêmicos, ao mesmo tempo que permite à sociedade acessar sua memória.
Além disso, organizar essa memória também nos ajuda a reconstruir a política de morte do Estado brasileiro contra a população negra. Ao longo das décadas, a violência intensificou-se, enquanto persistem a ausência de soluções estruturais e o abandono de um debate sério sobre a transformação da segurança pública.
Atualmente, pessoas negras têm 3,8 vezes mais chances de morrer em intervenções policiais do que indivíduos brancos no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024.
Outro dado alarmante: a taxa de homicídios por armas de fogo foi de 44,7 por 100 mil habitantes entre homens pretos e pardos, enquanto esse número é de 14,7 para o restante da população masculina, revela um levantamento do Instituto Sou da Paz. Em 2023, uma pessoa negra foi morta a cada quatro horas em intervenções policiais registradas em nove estados do Brasil, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.
Novembro chegou ao fim, a morte de Ryan completou um mês. Em dezembro, no dia 10, celebramos os 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tomados pela retrospectiva do ano. Como diz a canção: Então é Natal, o que você fez? Ao refletirmos sobre o ano que passou, temos a certeza da urgência e necessidade de democratizar o debate sobre segurança pública no Brasil, por meio da participação ativa dos movimentos sociais nos conselhos e de um maior engajamento dos parlamentares progressistas nesta agenda. O protagonismo não pode continuar nas mãos da Bancada da Bala.
Falhamos, mais uma vez, em não encontrar um caminho sólido para enfrentar uma política já institucionalizada de morte contra a população negra e periférica.
*Escrito em publicado em dezembro de 2024.
**A imagem que ilustra este post é de um protesto contra violência policial no Rio de Janeiro. Autor desconhecido até o momento.
Paulo Ramos é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e bacharel em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos. Também é coordenador de pesquisa do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo. Tem se dedicado ao estudo das relações raciais, violência, memória, movimentos sociais e políticas públicas. É autor do livro “Contrariando a estatística”: genocídio, juventude negra e participação política (Alameda, 2021), e do livro Gramática Negra Contra a Violência de Estado, publicado pela Elefante em outubro de 2024.