'Sem anistia' deve ser só o começo

Autores de O médico e o monstro, Fabio Luis Barbosa dos Santos e Daniel Feldmann analisam o significado do 8 de janeiro e as perspectivas para o novo governo: é preciso romper a dinâmica de contenção e aceleração encarnada pelo lulismo e pelo bolsonarismo, e construir novas formas sociais

Por Leandro Melito

 

Ao mesmo tempo que escancaram o golpismo bolsonarista, os ataques do dia 8 de janeiro em Brasília colocam para o governo Lula um primeiro grande teste: a ampla coalizão político-partidária que se estabeleceu no Planalto terá força para responsabilizar criminalmente os responsáveis, incluindo o ex-presidente?

“A gente pode pensar que a anistia aos crimes cometidos pela ditadura foi uma das condições que propiciou os crimes do bolsonarismo. Portanto, uma questão que está colocada para a nossa sociedade é se haverá uma segunda anistia”, aponta Fabio Luis Barbosa dos Santos, coautor de O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos, em parceria com Daniel Feldmann.

Publicado em 2021, O médico e o monstro discute as contradições do progressismo na América Latina e traz uma chave de interpretação inédita para entender a dinâmica social brasileira que possibilitou a ascensão do bolsonarismo, que representa o monstro na alusão feita à história de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, do escocês Robert Louis Stevenson.

Em entrevista para a Elefante, os autores analisam os acontecimentos políticos deste início de 2023. A partir das ideias defendidas no livro, os autores classificam a eleição de Lula como uma “trégua” em relação ao bolsonarismo, que mitiga a intensidade do processo de aceleração destrutiva da institucionalidade e a corrosão do tecido social empreendido nos últimos quatro anos.

Fabio Luis e Daniel Feldmann acreditam que os acontecimentos do dia 8 fortaleceram o consenso social que se formou em torno da candidatura de Lula, mas apontam que a imprescindível responsabilização de Bolsonaro e dos bolsonaristas pela Justiça não decretará, por si só, o fim do extremismo de direita no país.

“O combustível para a chama destrutiva do bolsonarismo vai voltar na próxima esquina, mesmo que seja sem o Bolsonaro. É uma questão que a gente levanta no livro. Você pode até prender o cara, [ele pode] ficar lá nos Estados Unidos, mas um bolsonarismo sem Bolsonaro já é uma realidade”, aponta Feldmann.

Para Fabio Luis, a saída em relação ao bolsonarismo exige a criação de outras formas sociais. “Nós não vamos sair do bolsonarismo apenas pelo caminho de Brasília. Para as forças sociais que têm como horizonte extirpar a dinâmica social que produz um bolsonarismo, essa trégua nos dá tempo para pautar o que é tecnicamente possível, mas politicamente impossível no momento, e, quem sabe, assim, encarnar em forças sociais uma política de mudança radical emancipatória.”

 

Confira os principais trechos da entrevista:

8 de janeiro

 

Daniel Feldmann: Aquilo acabou tendo um efeito de um espetáculo dentro de uma sociedade do espetáculo: “Nós estamos aqui para fazer a guerra, para destruir. Não aceitamos a esquerda destruir as instituições”. Tudo bem, agora os caras estão desmoralizados, presos, isso é importante. Inclusive, eu acho que o que aconteceu no dia 8, de certa forma, retomou esse novo consenso. Eles [as elites] não gostam de nada que o Lula faz e fala. Mas ou é Lula ou é a loucura bolsonarista. O que eu quero dizer com a situação brasileira do ponto de vista da reprodução social, é que não há lugar para todos. Ela é o combustível para a chama destrutiva do bolsonarismo, ele vai voltar na próxima esquina. 

 

Fabio Luis: Você tem atores que percebem a derrota eleitoral como quem perdeu uma batalha, mas não como quem perdeu a guerra. Setores cristãos evangélicos ou católicos conservadores que percebem a si mesmos como portadores de uma missão civilizatória para construir uma nação cristã e, portanto, percebem a política como um dos palcos de uma guerra pela eternidade. Policiais militares que se percebem como um bastião em defesa de uma ordem social que pode ser ameaçada pela esquerda ou, vamos dizer, pela “ideologia de gênero”. Para esses segmentos, a guerra continua. 

 

Anistia

 

Fabio Luis: Para combater de forma efetiva um fenômeno político como o bolsonarismo é preciso mudar a forma social. Isso não será feito neste governo. Então, o que é possível fazer nesse governo para além da gestão da crise, para além da contenção dessa dinâmica? Entendo que os eventos de 8 de janeiro estenderam o tapete para a possibilidade de responsabilizar criminalmente o governo bolsonarista e os seus principais operadores. A gente pode pensar que a anistia dos crimes da ditadura foi uma das condições que propiciou os crimes do bolsonarismo. Portanto, uma questão que está colocada para a nossa sociedade é se haverá uma segunda anistia. O que a gente teve nesse dia 8 foi uma sinalização de briga, que, por sua vez, pode ser uma oportunidade para colocar, avançar essa agenda de responsabilização dos crimes e dos criminosos do governo Bolsonaro. Sair dessa exige outra forma social, e a criação de outras formas sociais é um desafio da humanidade no século XXI. É um desafio maior do que o Brasil, mas do qual o Brasil faz parte. É preciso mobilização social e política para construir um genocida. Então o exemplo argentino mostra que a não anistia, a não impunidade dos crimes cometidos durante a ditadura se deve aos altos níveis de mobilização social e popular pela responsabilização dos criminosos. A anistia dos crimes da ditadura é o que possibilita o retorno do bolsonarismo no governo. Mas também tem a ver com a questão da normalidade, porque ao permitir a anistia dos crimes do governo Bolsonaro ela também é uma ulterior normalização dessa forma política. E, portanto, o que é socialmente aceito vai ficando cada vez mais rebaixado, mais violento e mais desagregador na sociedade. A responsabilização dos criminosos é uma forma de traçar uma linha dos parâmetros da sociabilidade burguesa, na qual nós estamos.

 

Daniel Feldmann: Ele [Bolsonaro] é uma expressão, digamos, da não nação que o Brasil se propõe a ser, da não sociedade que a gente foi se tornando. Ele trouxe de volta o porão da ditadura ao governo. Há aqueles setores que se viram derrotados politicamente com a Nova República. E eu acho que é fundamental a questão da anistia. Quando você não lida com a história, você paga um preço por isso. Eu acredito que o que houve na Argentina em termos de não anistiar os torturadores coloca a sociedade em condições muito melhores de combater as continuidades daquilo que foi a ditadura. Quando se faz uma anistia como a que fizemos em 1979, quando não se acerta as contas com o passado, os fantasmas continuam assombrando a sociedade. E a mesma questão se recoloca para responsabilizar o que foi feito na pandemia e com a Marielle Franco. Essas questões não são apenas simbólicas. Elas dizem respeito a como a sociedade lida com a história. 

 

Eleição de Lula

 

Fabio Luis: Minha interpretação da eleição do governo Lula é como uma trégua, uma espécie de alívio em relação ao que foi a aceleração bolsonarista. Ela suspende ou pelo menos mitiga e diminui a intensidade do que foi a destrutividade institucional e a corrosão do tecido social no período Bolsonaro. Essa dinâmica produz as forças sociais que desejam uma política violenta, como o bolsonarismo. Portanto, o que a gente chama de “monstro” não é o Bolsonaro em si, mas o fenômeno social que ele representa. A pergunta que se coloca é: qual será a eficácia da política lulista, que se caracteriza pela conciliação, quando o outro lado não quer conciliar? Lula costumava dizer que, se Judas tivesse votos no Congresso, ele negociaria com Judas; pois agora os Judas são muitos e eles estão armados. Então, como é que faz? Qual será a eficácia dessa política? Tem uma outra dimensão do argumento que a gente desenvolve no livro: a gente procura mostrar como a dinâmica da contenção [realizada pelo governo Lula] não evita a aceleração, e como a dinâmica da aceleração enseja a contenção. No entanto, isso não se confunde com o movimento pendular. É mais uma espécie de espiral corrosiva. Seja sob a égide da contenção ou da aceleração, a socialização autofágica contínua pode estar mais acelerada ou menos. Mas o movimento continua. Então, o Brasil que Lula encontra em 2023 é muito diferente daquele que ele encontrou em 2003. O que a gente viu neste 8 de janeiro é uma amostra do que é a emancipação do “médico”. A emancipação do médico seria o golpe que não ocorreu, que eu entendo que nunca foi uma possibilidade concreta — Bolsonaro manejava essa retórica muito mais com a intenção de negociar, de pressionar, de negociar condições, por exemplo, da sua impunidade, do para efetivamente dar um golpe. A frente democrática será provisoriamente reforçada pelo espanto causado pelos acontecimentos de 8 de janeiro. Mas, no médio prazo, a elite econômica brasileira ou a classe dominante brasileira entende que o arranjo institucional em que se assenta a Nova República, que tem como pilar a Constituição de 1988, se tornou anacrônico, perdeu o lastro histórico. Esse horizonte de uma cidadania salarial com direitos sociais e trabalhistas. Isso não está mais colocado. Portanto, é uma classe dirigente que procura uma saída para a Nova República. Podemos dizer que o bolsonarismo foi uma alternativa provisória, assim como Collor foi uma alternativa provisória para entrar na Nova República. Só que a aceleração bolsonarista ensejou neste momento essas forças que favoreceram o retorno do Lula. Mas o quadro mais amplo é que a intenção de superar a Nova República continua colocada e, portanto, as tensões nessa frente que elegeu o Lula tendem a se agudizar. Eu acho que o elemento que ilustra como a eleição do Lula, de certa forma, encarna uma espécie de tentativa de volta a um passado que não vai voltar, que é a Nova República, é a vice-presidência do Alckmin. Afinal, eles são as figuras mais destacadas dos dois partidos que fizeram a gestão da Nova República no período em que ela esteve vigente.

 

Daniel Feldmann: Quando a gente fala em contenção e aceleração, eu acho que a gente está falando de tendências que são, digamos, próprias do que é a vida capitalista. A extrema direita é um fenômeno global, assim como tentativas de contenção da crise social, políticas, sociais etc., que são realizadas no mundo inteiro também. Essa pulsão destrutiva, a pulsão de passar a boiada, privatizar tudo, desregulamentar tudo, tem a ver com a dinâmica de acumulação do capitalismo brasileiro. É uma dinâmica extrativista de acumulação por despossessão, uma dinâmica que não contempla de forma sustentável as demandas sociais, porque isso é incompatível com aquilo que o mercado acha que deve ser a sustentabilidade fiscal da dívida pública. Então, [a eleição de Lula] é uma trégua, porque as forças destrutivas da solidariedade social vão continuar ativas, inclusive no seio do próprio governo do PT, negociando. O Bolsonaro é um instrumento da aceleração pura e simples dessa destruição. Mas essas pressões vão estar colocadas. Agronegócio, garimpo, políticas antissociais do mercado… Vamos pensar o que é a própria figura do [ministro da Defesa] Múcio, por exemplo, que foi incorporado ao governo; todo esse jogo ambíguo, para dizer o mínimo, que ele fez, inclusive nessas manifestações. Então, você tem esse aspecto, aquilo que corrói, não só corrói a sociedade, como corrói a política, inclusive naqueles que tiveram que se transformar em “aliados da esquerda”. Isso não é uma crítica moral, é uma constatação do que virou a política brasileira.

 

Papel da esquerda

 

Daniel Feldmann: Nós, enquanto esquerda, parece que o nosso papel se transformou em defender as instituições existentes. Essa é uma contradição? É óbvio que todo esforço contra um golpe, contra a tomada à força do poder por Bolsonaro, pelos militares, pela polícia, pela milícia, ou mesmo todo o esforço que foi feito para não eleger o Bolsonaro, é positivo. E a gente está numa situação, inclusive para colocar questões de fundo, bem melhor com o governo Lula do que com o governo Bolsonaro. Mas a questão é a seguinte: qual é o nosso horizonte? Pensando em termos de transformação social, de mudar essa lógica econômica e social que gera a própria extrema direita e que desmoraliza a esquerda? Será que a nossa bandeira é defender as instituições enquanto tais? Óbvio que uma coisa é ser contra o golpe, mas a defesa das instituições é uma bandeira da esquerda? E essa relação foi feita de forma automática, quando a gente sabe, na verdade, que na história da esquerda é totalmente legítimo, inclusive no Brasil, atos em Brasília, a ocupação do Congresso. O problema não é você fazer um movimento social que, inclusive, questione o poder instituído e defenda sua substituição. O problema é o conteúdo daquilo que o bolsonarismo expressa: uma sociedade antidemocrática, baseada no ódio. A gente não vai conseguir combater a raiz que cria fenômenos como esse se a gente não se dispor a discutir seriamente o que virou o mundo do trabalho, a lógica econômica no Brasil. É possível pensar em alternativas? Se a gente sequer pautar isso, as respostas não vão surgir. A gente vai ter uma postura sempre conservadora, sempre defensiva, sempre apagando incêndios, e isso não vai resolver o nosso problema. Não só o problema da transformação, como o problema de entender, de tentar combater a dinâmica social que produz a situação que a gente vive. Como de fato o governo Lula é bem melhor do que o de Bolsonaro, a gente perde o horizonte da crítica, a gente perde a perspectiva da esquerda, que naturalmente é ser crítica em relação ao funcionamento da sociedade capitalista. Então a gente tem que afastar essa postura conservadora de aceitar pura e simplesmente o que está aí. A gente não tem uma resposta pronta para os problemas, mas a gente tem que pautá-los.

Fabio Luis: Sair dessa exige outra forma social. A criação de outras formas sociais é um desafio da humanidade no século XXI. É um desafio maior do que o Brasil, mas do qual o Brasil faz parte. Então, nesse sentido, a trégua também nos dá mais tempo para avançar na direção da criação, da experimentação e de pautar a necessidade de se criarem outras formas sociais, de pautar uma política que vá para além do que hoje está colocado como politicamente possível. Há um paradoxo que precisamos enfrentar: é tecnicamente possível emancipar a humanidade da escassez e do trabalho (entendido como uma relação coercitiva); no entanto, por mais que isso seja necessário, inclusive para nos salvar da catástrofe ambiental, isso hoje não está colocado, é politicamente impossível. Então, essa política do impossível, ela precisa se tornar possível. E acho que esse é o desafio que está colocado. Um dos argumentos que sustenta o lulismo e o progressismo latino americano como uma política do mal menor é que não há condições de mudanças mais ousadas. Será que uma política como bolsonarismo não indica um potencial na direção contrária? O que está claro é o seguinte: nós não vamos sair do bolsonarismo por Brasília. Não vai ser pela política da contenção, por mais importante que ela seja neste momento. Para as forças sociais que têm como horizonte extirpar a dinâmica social que produz o bolsonarismo, essa trégua nos dá tempo para pautar o que é tecnicamente possível, mas politicamente impossível no momento, e, quem sabe, encarnar em forças sociais uma política de mudança radical emancipatória.

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