Uma análise feminista da ascensão da direita argentina

Após a vitória da extrema direita, os feminismos convocam para fortalecer a construção coletiva e social

Por Verónica Gago e Luci Cavallero
Tradução: Teresa Cristina Silva
Publicado em Tiempo Argentino

 

Queremos compartilhar alguns elementos da perspectiva feminista para enriquecer o debate sobre os resultados das eleições primárias realizadas na Argentina em 13 de agosto. Não faremos interpretações definitivas, nem diremos “bem que avisamos”, nem acusaremos os eleitores do candidato de extrema direita Javier Milei, vencedor das primárias, de fascistas. Seria muito fácil, muito ineficaz.

Antes, é preciso compreender o que levou grande parte dos argentinos e das argentinas a votarem em Milei, e então discutir como as militantes populares feministas podem elaborar uma intervenção efetiva com o objetivo de impedir que a direita e a ultradireita cheguem ao governo federal.

Buscamos entender o voto em Milei a partir da economia cotidiana. Trata-se de uma área repetidamente desprezada em sua inexorável materialidade e, portanto, em sua racionalidade política. O movimento feminista, porém, a considera uma lente fundamental para compreender a violência econômica sofrida cotidianamente por quem sustenta a economia doméstica.

Endividar-se para viver, calcular a flutuação do dólar o tempo todo, ver como a renda mensal simplesmente desaparece — isso não é uma “narrativa” com a qual concordar ou não. Não se trata de uma especialidade da economia feminista, nem uma forma de explicar em nível micro o que acontece nos altos escalões.

Acreditar que as pessoas mais afetadas pela dinâmica econômica do empobrecimento não a compreendem, ou não a traduzirão eleitoralmente, significa infantilizá-las: um procedimento recorrente que supõe que haveria uma ideologia ou valores superiores que diminuiriam a importância daquilo que as pessoas sentem todos os dias no bolso.

Essa infantilização, como bem sabem as feministas, é uma forma de desprezo pelo âmbito e pelo fazer domésticos, pelo que acontece na cotidianidade. O espaço doméstico tem sido historicamente apagado pelo discurso econômico, que não o considera como lugar de produção de valor. Contudo, essa é a esfera central onde se vivenciam os efeitos concretos das desvalorizações cambiais, onde se organiza uma economia de gestos que vai da procura incansável de preços mais baixos diante da disparada da inflação ao uso de um transporte público sempre atrasado e que oferece às mulheres uma permanente sensação de insegurança.

A ideia de que essas “sensações” não constituem uma dinâmica política — ou que podem ser amenizadas com evocações do passado, como “antigamente era melhor” — é claramente insuficiente.

O espaço doméstico é onde o dinheiro se transforma rapidamente em dívida, onde a moeda vira fumaça, onde se sente a queda arbitrária de um salário social complementar por ter feito uma compra em dólar. A sensação de injustiça vivenciada pela relação entre esforço e dinheiro é fundamental. A “casta” tão criticada por Milei (seja ela qual for) é aquela que não deveria passar por esse cálculo diário.

Voto, frustração e especulação 

Como feministas, não podemos nos apoiar em rótulos fáceis e condenar abstratamente o fascismo, ou apontar o dedo para um setor que encarna a crise da representação política de forma difusa e contraditória. Antes, é preciso entender como Milei conseguiu se tornar o representante de quem sente que o dinheiro se esvai entre os dedos feito água e que a dívida é onipresente em casa — e que, por isso, deseja explodir o Banco Central.

Essa é uma fantasia radical, e devemos compreender que aqui se revela um desejo radical de mudança, que se identifica com quem promete aquilo que todo mundo sabe: que o dólar é estável. Em uma economia que dolarizou bens e serviços essenciais, como o preço dos imóveis residenciais, a proposta de dolarização de Milei coloca o negacionismo do outro lado (e faz com que o terrorismo do seu negacionismo do Estado pareça menos importante).

Assistimos, assim, ao paradoxo pelo qual nós, militantes, nos sentimos sufocadas: um expoente do mundo financeiro com profundas ligações com fundos de investimento, um defensor da institucionalidade global da concentração de capital, que tem em suas fileiras candidatos como Ramiro Marra, um corretor da bolsa que especula sobre a cotação do dólar, é quem se encarrega de traduzir politicamente as vivências cotidianas das pessoas pobres que se alternam entre o cálculo, a frustração e a especulação.

A proposta de Milei, de radicalizar o governo financeiro de nossas vidas, se combina com um discurso reacionário, misógino e patriarcal. A insegurança trazida para o cotidiano lubrifica um discurso sobre a necessidade de “se armar”, de se proteger a todo custo. É sabido, mas pouco debatido, que o voto em Milei tem um importante componente masculino e jovem. Isso, em parte, é uma reação aos avanços feministas dos últimos anos, mas também combina a frustração com as incertezas do futuro e a humilhação material cotidiana no presente.

Diante disso, o melhor caminho não é “esconder a pauta do feminismo” (ou banalizá-la), mas sim se encarregar da humilhação vivida pelo povo nos salários, nos transportes e no mercado imobiliário, e que busca desesperadamente se escorar em figuras de autoridade.

Milei traz de volta a roupagem do machismo, da autoridade que se afirma no grito, mas, por outro lado, não é tradicional. Milei chama sua irmã de “chefe” e se refere a seus animais de estimação como “filhos de quatro patas”, enquanto sua candidata a vice — Victoria Villarruel — defende os valores militares. Não é a mesma direita de sempre; ela soube se reinventar.

O que fazer?

Essa é a pergunta que mais interessa neste momento. Vamos sair e nos organizar em assembleias, redes, ações concretas. Os feminismos já souberam traduzir o desconforto em organização, e agora não há tempo para mais nada. Os feminismos já souberam construir massividade e transversalidade, e agora não podemos ficar pregando para convertidos. Os feminismos já souberam politizar a crise da masculinidade para convidar os jovens a construir outros vínculos e outras referências. Nas semanas que restam até as eleições de 22 de outubro, precisamos entrar em um estado de alerta coletivo, traçando amplas alianças e militâncias em lares, praças e ruas.

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