
América Latina tem disposição radical; falta imaginação emancipatória
Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala
O progressismo na América Latina alcançou suas vitórias recentes, mas carregando também suas grandes contradições. De certa forma, ao fortalecer a lógica econômica vigente, acaba incapaz de romper em definitivo com as práticas neoliberais. Pior: viu surgir uma nova onda conservadora ainda mais comprometida com os de cima e também mais violenta. Precisamos imaginar soluções efetivas para os problemas populares e achar novos caminhos no meio da tirania, da catástrofe, do messianismo e do risco direto mais claro e evidente, a extrema direita.
O Elefante na Sala é o podcast da Editora Elefante, disponível nas plataformas de streaming (link para Spotify e Youtube) e no player acima. Você nos apoia curtindo, seguindo e avaliando nossos canais. Nesta primeira temporada, a partir de março de 2025, vamos trazer uma série de conversas com autores do nosso catálogo, com novos episódios às quintas-feiras. O quinto programa conversa com Fabio Luis Barbosa dos Santos, autor de O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos, em parceria com Daniel Feldman. Aqui na Elefante, Fabio também é autor de Além do PT e Uma história da onda progressista sul-americana, além de co-organizador de Cuba no século XXI, México e os desafios do progressismo tardio, Fronteiras da dependência: Uruguai e Paraguai e Entre a utopia e o cansaço: pensar Cuba na atualidade. A transcrição está abaixo, e estará sempre aqui no nosso blog e na seção Podcast.
Fabio, quando a gente olha para as saídas progressistas na América Latina, a gente fica com essa sensação de eterno retorno, de que as elites do nosso continente estão sempre prontas para frear os avanços, para manter pilares do capitalismo, da desigualdade. Queria começar te ouvindo por aí. Qual é o momento atual dessa questão? Essa necessidade das políticas de esquerda sempre precisarem se reafirmar. E ainda, no Brasil, essa sensação de esgotamento no período que juntou pandemia com o governo Bolsonaro.
Eu acho que a gente está confrontado com a triste constatação de que a direita e, na realidade, a extrema-direita está se reinventando politicamente e, com isso, ganhando audiência. Enquanto a esquerda, ou a política de esquerda, principalmente aquela que gira em torno de partidos e de galgar espaços no Estado, ela está olhando para trás, para o século XX, para formas políticas do passado. Então a gente daí percebe uma coisa, uma lição positiva, que o radicalismo da direita nos mostra que o discurso de que a gente não pode ser radical porque o povo não quer radicalidade está sendo colocado em xeque.
Mas então, nesse momento, a gente tem uma espécie de inversão em que a direita propõe a mudança radical e a esquerda está, vamos dizer, abraçada em tentativas de reconstituir um passado que não vai produzir as condições que a gente vive hoje. Eu acho que o grande drama do nosso tempo é que a imaginação política, o radicalismo, a revolução virou uma pauta da direita, enquanto o progressismo, se a gente puder dizer a política de esquerda como progressista, está identificado com a defesa da ordem, a gente está defendendo o Congresso, a grande mídia, as instituições. E eu acho que isso dá uma noção de como as coisas estão de pernas para o ar e de como, na minha opinião, a gente precisa se reinventar para além da política progressista.
E o que você destacaria, Fabio, de caso latino-americano, de movimentos, figuras, de como a gente está conseguindo espaço, subvertendo um pouco isso, para algo que possa nos tirar, de certa forma, dessa sensação que é muito voltada para essa recuperação da ordem?
Ah, tem muitos, né, Paulo? Só que, no geral, são movimentos que têm uma enraização no território e que constituem laços comunitários e tentam construir formas de vida fora do mundo da mercadoria e fora do Estado. O mais conhecido na América Latina é o zapatismo, que está muito atravessado pelos conflitos violentos entre milícia e Estado. Esse é o drama do zapatismo, que se constituiu como um movimento que deu as costas para o Estado e, no entanto, a corrosão do Estado. misturada com o crime organizado – porque são relações como as que vemos aqui no Brasil miliciano, tudo misturado – está, vamos dizer, colocando o zapatismo embaixo desse fogo cruzado.
Você tem movimentos indígenas, movimentos camponeses na América Central, na América do Sul, que têm esse horizonte. Acho que o outro drama que se coloca aí é que o capitalismo é um sistema totalizante, o que significa que não tem “fora” dele. Então, tem aquele lema zapatista, eles dizem assim, “um mundo em que caibam outros mundos”, só que esse mundo em que caibam outros mundos tem que ter uma nota de rodapé dizendo: menos o capitalista. Então, é um pouco que nem Canudos, se a gente for pensar no século XIX brasileiro. Você não tem a possibilidade de um quilombo. Por que Canudos incomoda tanto? Por que não deixa Canudos, os quilombolas, no seu campo? Porque é uma dinâmica totalizante que não tem lugar de fora.
Eu sugiro um outro livro, do Raul Zibechi, Territórios em rebeldia. Ali tem muitos exemplos na América Latina, concretos. Estou só colocando o zapatista como uma espécie de referência geral, mas muitas lutas, por exemplo, na grande São Paulo. Falar duas que eu conheço, os guaranis e uma ocupação artística no centro de São Paulo. São artistas de várias partes do continente que estão fora da lógica da acomodação do sistema, estão na lógica do enfrentamento e da construção da alternativa. A lógica do progressismo é a lógica da acomodação ao sistema, é a lógica do menos pior. Como é que a gente, então, dada essa realidade, como é que a gente pode mitigar os seus efeitos, amaciar essa, vamos dizer, essa violência estrutural? E é claro que isso é positivo, isso é bom, ninguém quer mais violência quando pode ser menos, ninguém quer uma cirurgia quando pode ser uma aspirina. A questão é que, e aí é uma dinâmica que a gente analisa no livro O médico e o monstro, por que isso tem uma eficácia limitada e acaba a despeito das intenções dos governos, dos seus líderes, reforçando tendências que aceleram a crise.
Você citou Territórios em rebeldia, a gente tem agora também Geografia da autonomia focado no movimento zapatista, e aí, até voltando a esses termos, falando de progressismo: às vezes a gente cai numa dualidade esquerda e direita, e patina um pouco nesses termos em certos debates. Como você vê a sociedade latino-americana atual lidando com essas ideias mais gerais, diante de mudanças tão bruscas nas nossas vidas? Por exemplo, citar o emprego, o trabalho, numa dinâmica completamente diferente hoje do que a gente tinha quando Lula chegou ao poder pela primeira vez lá no início do século.
Olha, o pessoal que fez pesquisas de opinião durante aquela grande explosão de rebeldia no Chile, a partir de outubro de 2019, chegou a uma constatação surpreendente de que a grande maioria, não lembro o índice exato, mas era cerca de 90% dos entrevistados, não se identificavam nem com a esquerda nem com a direita. Mas todos estavam ali evidentemente furiosos e dispostos, estavam ali colocando os corpos, né, para mudar aquela situação.
Então, eu acho que a gente também tem que lidar com a constatação de que a política que é, vamos dizer, identificada com a esquerda partidária, ela se aproximou tanto do seu oposto, que ela acabou se identificando, digamos assim, com a política ordinária, que é o que aconteceu no Brasil e em outras partes da América Latina. Não é que o PT fosse a mesma coisa que o PSDB, mas é o PSDB um passinho para a esquerda e, do ponto de vista de quem está no corre, esse passinho faz muito pouca diferença. Então, quando se olha assim no geral, no contexto, o que parece mais diferente não é o PSDB do PT, mas é o Bolsonaro em relação a eles dois.
Nesse contexto, a terminologia na esquerda perdeu um pouco da sua força, do seu apelo, da sua convocatória política. E o que ficou ainda mais complicado, quando a gente olha para situações como a Nicarágua, a Venezuela, que são identificadas pela população em geral como governos de esquerda, mas que descambaram num caminho muito controverso, antidemocrático e antipopular – a Nicarágua há muito tempo, né –, como é que a gente se reposiciona? Eu volto a dizer, eu acho que tem duas coisas diferentes para serem percebidas. Primeiro, é que há fúria, não há só cansaço, mas há uma disposição de enfrentamento, de uma abertura para a mudança radical. Mas, essa abertura para a mudança radical não está encontrando expressões, vamos dizer, numa direção emancipatória, porque de fato elas não estão colocadas.
O que está se colocando como política, que a gente poderia identificar como esquerda, está mais próximo de uma reconstituição dessa ordem do que da sua transformação radical. E a direita é que está colocando isso. E aí, a gente fica nesse mundo de pernas para o ar. Veja você, pensando no progressismo. No caso da Argentina, em 2001, o final ali teve uma semana em que derrubaram cinco presidentes. Ou na Bolívia, no começo do século XXI, a Guerra da Água, a Guerra do Gás, três presidentes foram derrubados pelas ruas.
Em ambos casos, tanto o kirchnerismo, quando o Néstor Kirchner se elege na Argentina, como quando o Evo Morales se elege na Bolívia, a vitória política dessas candidaturas cumpre o papel de colocar, de trazer a política de volta para as instituições. Tirar ela das ruas e colocar de volta nas instituições. E o progressismo, de modo geral, ele cumpriu um papel de reconstituir a legitimidade da política e das suas instituições, que estava muito desgastada pelo neoliberalismo.
Mas, o que acontece quando a legitimidade do próprio progressismo é corroída? Que é o que aconteceu na Argentina, é o que a gente vê no Brasil. O que acontece é que, então, a resposta, a reação a essa corrosão, que é interpretada como a corrosão, vamos dizer, da classe política como um todo, como se diz na Argentina, ela vai produzir a radicalidade do outro lado, do lado da extrema-direita.
Legal você falar de mobilização nas ruas, porque eu ia te perguntar exatamente da força disso na nossa região hoje. A gente está gravando num período em que a Argentina vive um novo aquecimento de protestos diante do governo Milei. E a gente passou por um período de uma novidade da articulação das redes sociais, depois passou por um choque na pandemia. E hoje, o que te parece o poder das ruas tomadas, dessas imagens, de se contar a quantidade de pessoas num ato, como que você vê isso hoje no nosso continente?
Eu acho que, enquanto a gente viver encarnados em corpos, são corpos que vão mudar a vida e a sociedade. Você falou da pandemia, com esse momento de angústia, de isolamento e, no caso brasileiro, uma sensação de impotência diante do descalabro da política federal e da morte em torno de nós. Mas isso não foi assim em todo o continente. A gente pode lembrar que houve alguns países em que a população foi para as ruas, apesar do vírus. Na Colômbia, por exemplo, eles levavam os cartazes que depois viralizaram na região, dizendo assim, “se o povo está na rua é porque o estado é mais perigoso do que o vírus”.
Isso aconteceu na Colômbia. No Chile, que já tinha o “estallido” social, as pessoas, na verdade, nunca voltaram para suas casas. E no Peru, que chegaram a derrubar um presidente durante a pandemia. E olha a curiosidade, são os três países que não entraram na onda progressista no começo do século XXI. Então, é como se essa erosão da legitimidade da política convencional acontecesse mais tarde. Como se o tempo fosse um pouco mais tardio nesses três países, que foram países que, em seguida, elegeram candidatos, vamos dizer, alternativos, identificados ou com progressismo, como o caso do Boric ou do Petro na Colômbia, ou pelo menos como uma alternativa ao establishment, um outsider, vamos dizer, popular, como foi o caso do Pedro Castilho no Peru, que nesse caso durou pouco.
Não vou entrar nos detalhes, mas o que eu quero chamar a atenção é, de novo, três coisas. Primeiro, que aparece o progressismo reconstituindo, ou tentando reconstituir a legitimidade política perdida. Segundo, eu acho que essa constatação das rebeliões tão radicais, a insurgência do Chile, a insurgência colombiana, e a melhor ideia que a gente consegue pensar ainda são novos governos e, quem sabe, novas constituições. Está aí uma falta de imaginação política que é preciso encarar e transcender. E o terceiro ponto é que, por outro lado, talvez você já venha perguntar assim, mas será que a gente tem uma outra onda progressista? Porque tem o Brasil, tem o Petro, tem o Boric… Eu já vou adiantando. Vejam, parece que esse espaço, a possibilidade de reconstituição da legitimidade política, vai diminuindo.
O que eu estou querendo dizer? O Lula enfrentou o Bolsonaro a partir de 2018, mas vejam, ele teve três mandatos e meio na presidência antes do Bolsonaro aparecer. O Boric enfrentou o Castro já no segundo turno da sua primeira eleição e a extrema-direita no Chile está a toda, quer dizer, já são fenômenos que coexistem. A radicalidade da extrema-direita com esse progressismo de segunda cepa, de segunda geração, vamos dizer assim.
Ou a gente pode olhar um outro exemplo na Guatemala: quando o Bernardo Arévalo se elegeu, ele quase não conseguiu ser empossado. Então, são indícios de que a brecha para uma reconstituição da legitimidade da política pelo caminho progressista está se estreitando, porque o Brasil em 2024 é muito diferente do Brasil que o Lula encontrou quando se elegeu pela primeira vez em 2002. Assim como a América Latina que o Boric encontrou é muito diferente daquela do começo do século XXI.
Eu não queria deixar de falar de Cuba, Fabio. No livro que você organizou mais recentemente, Entre a utopia e o cansaço, os textos estão passando por uma certa ideia de repensar ou disputar a ideia da revolução para Cuba no tempo de hoje, ou pelo menos identificando que isso está sendo repensado na vida local. Como olhar para Cuba hoje, à esquerda e tentando fugir das armadilhas, das simplificações?
Cuba não é uma ilha. É, mas não é uma ilha, no sentido de que a crise global também incide na sociedade cubana. Ela vai ser diferente. Nunca houve tanta gente tentando sair de Cuba, migrando de Cuba. A mesma coisa acontece na América Central. Só que são motivos muito diferentes. Na América Central, ninguém em Cuba está fugindo das “maras”, das “pandilhas” e do narcotráfico.
Mas a crise, então, é uma crise que tem expressões diferentes, mas não deixa de ser crise. Esse livro procura fazer uma radiografia sincera, ao mesmo tempo comprometida e simpática ao processo cubano. Inclusive, para que não aconteça como aconteceu para o campo popular, para o campo da esquerda brasileira, latino-americana, de ficar sem saber como lidar com uma situação crítica, como aconteceu com a Venezuela.
A ideia de pensar Cuba no século XXI é tentar pensar, tentar olhar de uma forma, como eu disse, crítica, mas empática, para compreender o que se pode pensar em termos políticos a partir da Revolução Cubana, dessa experiência heroica, tremenda, mas que está atravessando grandes adversidades. Porque o continente todo está atravessando as adversidades, então a gente tenta olhar quais as expressões disso e tentar entender o que está acontecendo para poder fazer a discussão.
Por isso, pensar. Para pensar, a gente precisa se informar. E aí é que vem esse time incrível de gente que tem, a maioria deles brasileiros, que têm pesquisa empírica sobre Cuba. Não é gente que está escrevendo dando a opinião, é gente que fez trabalho de campo, então conhece com intimidade cada um dos aspectos que vão ser discutidos ali no livro.
Para a gente fechar, Fabio, dar um giro pelo continente, te ouvir passar pelo que está acontecendo no Uruguai, no Equador, no Chile… [nota da edição: conversa gravada antes das eleições do Equador, em abril de 2025]
Eu acho que cada história é uma história, é que nem jogo de Copa do Mundo. Tem uns jogos chatos, mas na América Latina, com time latino-americano, é difícil. Então, o Uruguai, eu acho que é o último bastião da política que não foi atravessada pela extrema-direita no continente. A alternância, vamos dizer, nos marcos da ordem: o progressismo esperou no cantinho, perdeu uma eleição, esperou no banquinho, e seu momento voltou. Isso era o que o kirchnerismo estava fazendo na Argentina, só que aí o Milei deu certo.
O PT no Brasil não teve essa, quis ficar e ser dono da bola, muito tempo comandando o jogo, e do ponto de vista das suas oposições, enfim…. Aí o carro capotou, como a gente sabe. O Equador tem o elemento indígena que entra na disputa e o avesso disso, o narcotráfico. A eleição anterior no Equador foi muito controvertida, porque o candidato indígena, o Iaco Pérez, ele tinha grande chance de ir para o segundo turno e há suspeitas, ele tem certeza, de que o progressismo equatoriano, que são os descendentes do Rafael Corrêa, fraudou aquela eleição para não levar o candidato indígena, achando que ia ganhar fácil da direita, que foi para o segundo turno, e acabou perdendo da direita convencional.
Então, isso bagunça essas leituras de esquerda e direita, porque o progressismo equatoriano bate nos indígenas e agride o meio ambiente, aliás, no continente, isso acontece em todos. Aí, quando a gente vai olhar para o Chile, ali acho que é um drama muito sensível, porque, diante da enormidade que foi o “estallido” social, será que a pequenez do governo Boric vai significar uma volta, vamos dizer, um neo-pinochetismo comandando o país? Seria um drama, e tanto, a gente, cinco décadas depois, quatro décadas depois de se livrar das ditaduras no Cone Sul, voltar a ter os países comandados por regimes autoritários, simpatizantes do autoritarismo, só que, dessa vez, eleitos pelo voto.
Claro que isso depende do que acontecer no Brasil também logo mais, mas o futuro não é muito alvissareiro.